Humor e liberdade

Humor e liberdade

A decisão anunciada pelo New York Times de pôr fim à publicação de “cartoons políticos” é provavelmente o melhor indicador do estado geral de indigência a que chegou a democracia norte-americana sob a gestão de Donald Trump.

Na origem desta atitude está a publicação, em Abril passado, de um desenho de António  porventura o artista gráfico português mais conhecido e reconhecido internacionalmente  satirizando a relação subserviente do presidente dos EUA para com o primeiro-ministro de Israel.

No mesmo dia em que o NYT reproduziu o cartoon (que já havia sido publicado em Portugal pelo Expresso, sem causar qualquer escândalo) um tuíte do filho de Trump foi o rastilho para acender a fogueira de acusações que se abateram sobre o jornal  e, por arrasto, sobre António. Que era uma manifestação de “anti-semitismo”, um “acto vergonhoso” e “racista”, um “desrespeito pelos judeus”. A ladainha do costume, enfim, sempre que alguém ousa criticar o estado e/ou a política de Israel.

O coro foi de tal ordem que o próprio NYT se apressou a reconhecer o “erro” (que é como quem diz: a publicação do cartoon) e a apresentar, não um, mas dois “pedidos de desculpas”, garantindo que iriam ser tomadas medidas para que situações como esta não voltassem a suceder. Dois meses depois, aí estão elas.

Claro que a credibilidade e a independência do jornal ficam a partir de agora irremediavelmente afectadas, mas, pior do que isso, é a liberdade de expressão, de que os norte-americanos tanto se orgulham, que sofre um duro golpe. Saber conviver com as críticas, mesmo quando injustas, é uma característica fundamental das democracias – e é também aquilo que melhor as distingue das ditaduras.

O homem é o único animal que ri, e isso deveria ser suficiente para que o sentido de humor fosse encarado como um traço identitário fundamental, tanto da nossa espécie como do nosso carácter  e também da nossa inteligência. É por isso que, de um modo geral, quem não se ri (dos outros, mas também de si mesmo), das duas, uma: ou é estúpido, ou não é boa pessoa. Ou ambas as coisas, que é o pior de tudo.

É por isso que o poder – quer o absoluto, quer o relativo – se dá normalmente tão mal com o humor. Quem está no poder tende a levar-se sempre demasiado a sério, reage mal às críticas e principalmente não suporta a ideia de ser ridicularizado  por mais ridícula que seja a teoria e a prática de quem o exerce.

Ao ceder às pressões (do poder político, mas também, com toda a certeza, do poder económico que o controla), o NYT fez uma opção clara entre a liberdade e a submissão. Está visto que por aqueles lados não se conhece o velho adágio lusitano: “Quanto mais alguém se agacha, mais o cu se lhe vê.”

O humor é, por regra, a primeira vítima dos censores. Compreende-se: uma boa piada pode ter um efeito demolidor. Os mais velhos ainda se lembrarão de um tal deputado Morgado, que em pleno parlamento, nos idos de 80 do século passado, teve a infelicidade de dizer que «o acto sexual é para ter filhos». Ficou como nota de rodapé da história da nossa democracia, não pelas ideias parvas que defendia, mas pela sátira notável com que, em 16 versos curtos, Natália Correia o arrasou.

Não é demais lembrar que, em Portugal, o autor com mais livros apreendidos durante a ditadura foi precisamente um humorista: José Vilhena, por sinal também o editor da primeira publicação censurada em democracia – a Gaiola Aberta, suspensa por 60 dias entre o Natal de 1974 e o Carnaval de 1975.

Ora o que o NYT fez é objectivamente um acto de censura. E a censura, ao contrário do que pensam os que a defendem e praticam, é sempre uma demonstração de fraqueza.

Mestre Vilhena costumava dizer que um censor é “alguém cuja função é separar a palha do grão, a fim de ser publicada a palha”. O New York Times escolheu a palha, mas, pronto, cada um come do que gosta. Que lhes faça bom proveito.

Aventar, 13.Jun.2019