Um funcionário do PCP entrou em ruptura com a linha oficial do partido e foi despedido por motivos políticos – é o que diz o funcionário.
Um funcionário do PCP abandonou o posto de trabalho que lhe fora atribuído e foi despedido por motivos laborais – é o que diz o PCP.
Porque nem o PCP está acima da lei, nem os funcionários do PCP estão abaixo dela, o caso foi parar a tribunal. E o tribunal foi ver o que diz a lei – que pode ser dura, mas é a lei – e condenou o PCP a receber de volta a ovelha tresmalhada.
O PCP contestou a decisão, recurso para aqui, recurso para ali, e finalmente a zaragata chegou ao Tribunal da Relação de Lisboa, onde o juiz – que não era um, eram três – confirmou a sentença da primeira instância. E o PCP terá, portanto, à face cega da lei, de reintegrar o renegado.
Vencido, mas não convencido, o PCP argumenta agora que é “inaceitável que alguém queira impor” como quadro político “qualquer pessoa que se oponha” à linha, política, do partido. E que a decisão “em nada altera das razões” do PCP – que, nestas e noutras coisas, tem razões que a razão (e a própria lei) desconhece.
É claro que, do ponto de vista político, o PCP tem toda a razão: um funcionário de um partido não pode sê-lo se estiver em rota de colisão com a linha desse partido. Sobretudo quando esse partido é o PCP e o funcionário só sabe exprimir-se em zoeira de claque.
E não há motivos para crer que seja outra coisa e não isso o que se passou neste caso. O próprio funcionário despedido admitiu que na origem do problema estiveram divergências manifestadas por ele em reuniões e órgãos internos do PCP, nomeadamente quanto ao acordo de governação com o PS, em 2015 – a chamada “geringonça” que os comunistas aceitaram integrar, juntamente com o Bloco de Esquerda – e que, para o funcionário enxotado, terá sido uma inadmissível cedência dos comunistas aos ditames da burguesia “porca, mórbida e venal”, como lhe chamava em tempos outro funcionário, não exactamente do PCP, mas quase.
Ser funcionário de um partido não é exactamente o mesmo que ser caixeiro do Pingo Doce. É, sempre, mesmo no caso dos funcionários menores, um cargo de confiança política. E é natural que assim seja: ninguém imagina, por exemplo, o Chicão-toleirão em serviço no ex-hotel Vitória, nem que fosse para despejar latrinas. Sendo assim, e tal como um padre que deixe de crer em Deus não pode ficar na Igreja, ao funcionário descrente restaria caminhar de cabeça levantada para a porta de saída.
Acontece, porém, que PCP e funcionário trataram de lidar com este assunto, obviamente político, como se fosse um problema laboral. O funcionário a recusar a transferência para outro posto de trabalho, o PCP a dizer que o relapso abandonou o lugar onde fora colocado. E que, portanto, e por lei, isso era causa justa para o inevitável despedimento.
O outro não se ficou, e avançou com um processo contra a entidade patronal, o PCP. Visto tudo à luz imparcial da lei, o veredicto foi o previsível: reintegre-se o malandro, pague o condenado as custas, e arquive-se.
Ora isto é um sapo que ao PCP custa a engolir mais ainda do que o outro, quando foi preciso decidir entre o que parecia ser um regresso ao passado e o que, mal ou bem, significava continuar no presente e caminhar, mesmo em marcha lenta, para o futuro. E já nessa altura havia no PCP quem, como o feroz funcionário de agora, achasse que mais valia dar o ouro todo ao bandido do que garantir os tostões já conquistados.
Esta história, triste mas não assim tão incrível, de facadas e traições, lembra-me outra, já antiga, diferente no conteúdo, mas semelhante na forma. Foi quando Júlio Pinto, trabalhador de um diário que o PCP dirigia por interposta editorial oficiosa, foi despedido por publicar noutro jornal um texto que, alegadamente, ia contra o que o partido achava.
Neste caso, havia porém duas diferenças: uma, de monta, é que Júlio Pinto não era um funcionário banal, mas um jornalista de talento e princípios; outra, menos importante, mas deveras relevante para ambos os lados (político e laboral) da questão, é que, formalmente, quem despediu foi o jornal, não o partido. Assim – consumado que foi o crime pelos que, formalmente também, dirigiam o periódico –, quando o partido expulsou o jornalista, se alguém dissesse que uma coisa tinha a ver com a outra estava, como não podia deixar de ser, ao serviço da reacção nacional, do capitalismo internacional, e obviamente da CIA.
O pretexto para o despedimento foi, então, o desrespeito por uma “norma interna” (que não existia, e se existisse era ilegal), mas foi claro para todos, menos para os cegos de espírito, que se tratava apenas de uma mão-cheia de areia atirada para os olhos do bom povo. E até o então grande dirigente da indomável CGTP, um tal Judas ainda não perestroiko (a propósito: que é feito dele? Já morreu? Ou reformou-se e anda aí aos gambozinos?), até esse Judas veio dizer que “o senhor Júlio Pinto é um trabalhador como outro qualquer”, e só lhe faltou acrescentar que, porque assim era, podia ser despedido à vontade pelo partido dos trabalhadores.
Isto, claro, foi o que se passou à séria com um jornalista a sério. Que, já agora e de caminho, nem sequer pôs em tribunal o partido ou a editora testa-de-ferro, crente de que o primeiro não deixaria a segunda levar a indignidade até onde ela chegou. Enganou-se, claro, e obviamente fez mal. Penou por isso, mas foi livre até morrer. Já dos outros, alguns só não se finaram de vergonha por não saberem o que isso é. E – porque o despudor não mata, mas rende – quando o muro de Berlim se esfarelou e os ratos se apressaram a abandonar a barcaça, houve até de entre eles quem se bandeasse para o lado do inimigo mais rapidamente do que leva a dizê-lo.
Fechar parêntesis, que o tempo agora é outro, e esta história e o protagonista dela também. Só o modo é semelhante. Da parte do PCP, entenda-se, que quanto ao funcionário estamos conversados. Voltemos pois, com vossa licença, à vaca fria.
Não me custa a crer que o PCP seja o partido que melhor defende os trabalhadores. Mas só desde que trabalhem para a burguesia, não para o PCP & associados. Nesse caso, o que é válido para os que estão sujeitos a ordens alheias deixa rapidamente de o ser quando as ordens vêm de dentro. Ter sol na eira e chuva no nabal, já se sabe, é uma impossibilidade meteorológica. Mas o PCP não tem medo de ninguém, nem das forças da natureza.
Porque o sol brilhará para todos nós, desde que obedecentes à causa. Basta depositar o cérebro à guarda de cabeça alheia, e não questionar as ordens que, centralística e democraticamente, os de cima impõem aos de baixo.
Claro que, se houvesse nisto tudo os mínimos olímpicos de seriedade, o PCP teria assumido desde o início que a querela com o agora ex-futuro-ex-funcionário era uma divergência política, eventualmente insanável. E o rebelde optaria por sair pela porta grande da dignidade.
Só que, neste caso, era difícil. Pelo PCP, porque é mais fácil um camelo entrar pelo buraco da fechadura da Soeiro Pereira Gomes do que os camaradas dirigentes perceberem que só mesmo a verdade é revolucionária. E pelo funcionário, porque pode herdar-se o nome de um pai honrado, mas tudo o resto carece de prova factual.
O mais giro desta história, ainda assim, é mesmo a razão de ser dela. É a primeira vez, que me lembre, que alguém é expulso do PCP por excesso de estalinismo. A idade não faz o jovem e, ali, alguns há que são mais velhos do que o comité central inteiro.
Um dia destes, ainda apanham o Jerónimo a fumar.