Três olhares sobre Manágua

Três olhares sobre Manágua
Hay tanto maíz que sembrar tanto niño que instruir tanto
enfermo que curar tanto amor
que realizar tanto canto. Yo canto
un país que va a nacer.

Ernesto Cardenal

Ao Fausto e ao José Mário Branco, companheiros de viagem

I

As noites de Manágua são mais claras
luzes imensas de estrelas pequeninas
pousadas nas árvores e nos rostos das mulheres.
Pergunto aos amigos o nome secreto do destino
e eles apenas sorriem. Como o poeta
de Solentiname no dia da libertação
ou aquela rapariga de olhos transparentes
que me aponta um qualquer astro inacessível
do outro lado do futuro.
O destino, então: talvez em Manágua
ou Jinotepe
onde os homens sabem das coisas que viveram
os ódios todos
as mortes
e o mercado de Masaya queimado pedra a pedra
por vingança ou desespero.
O destino ainda: em Matagalpa
onde a floresta se confunde com os risos das crianças
ou quem sabe em qualquer rua
num recanto sem nome onde morreram com a dignidade possível
dois velhos camponeses e um soldado anónimo.

Seguimos em frente dizem-me os amigos
e os seus olhos brilham de tranquila alegria
iluminados pelas minúsculas estrelas verdes de Manágua. Seguimos
em frente
até onde a poesia nunca dorme
inquiteta
como os corações enormes que a fizeram nascer.

 

II

Loucos, talvez, os meus amigos. Loucos como o poeta
fascinados por certezas e desejos inventados num sabor de tamarindo.
Loucos até como as vacas que cruzam a estrada à minha frente
esquecidas das regras civis de comportamento. E no entnato
vigilantes
como os amigos que descubro em Manágua
os amigos meus atentos que constroem a cidade e os lugares incomuns
do reencontro.
Perdoem-me se vos falo assim: ignorante dos mandamentos
estruturais e purificadores do texto
alheio às vírgulas prudentes e pouco cumpridor
de metodologias semânticas. Perdoem-me as omissões
descritivas de generalidades perdoem-me o rum e os desencontros
do léxico. Mas é urgente dizer-vos dos meus amigos
felizmente loucos
capazes de arrasar vulcões ao som de uma guitarra
que anuncia o prazer sem nome do dia seguinte.
É necessário falar deles sem as palavras calculadas dos locutores de serviço
ouvir a música das suas bocas
beber cada desejo
aprender a linguagem das sementes apaixonadas.
Loucos sim os meus amigos. Sequisoso e tranquilos
tal e qual as madrugadas de Manágua. E com eles
percorremos descalços as areias serenas do Pacífico
provavelmente doidos
de esperança.

 

III

São assim as noites e as luzes
onde o calor dos corpos se mistura num rumor de auroras por inventar.
São estes os destinos
as árvores e as tardes
ingénuas e maravilhosas como a paisagem
que se despe perante os meus olhos descrentes:
o sorriso dos amigos e o abraço do poeta
a desenharem novos rios
de margens acesas num poente de ternuras.
Seguimos em frente dizem-me os amigos loucos
imensos e claros numa rua de Manágua. E nós
os bêbados
tomaremos o poder.

Manágua - Havana - Lisboa, 1984
In Margem para Dúvidas | Estante Editora | 1998