Este é um livro de histórias. Histórias de gente invulgar, mas real. Aqui se fala, na primeira pessoa, do fado de Amália e dos sambas de Baden Powell; das revoluções musicais de Chico Buarque e de Sting; da canção francesa das épocas de Ferré e Greco; da grande música de intervenção de Seeger e Yupanqui. Mas também da poesia gestual de Marcel Marceau e da quinta dimensão das artes de palco no corpo e na alma de Mário Viegas. Dez personagens de situações excepcionais e a sua relação com o mundo.
Todas estas entrevistas foram feitas para jornais, e a prosa de jornal é, por natureza, efémera. O velho mestre Luís de Sttau Monteiro, com o implacável sentido de humor que o caracterizava e a dureza adequada à realidade circundante, definia o jornal como «aquela coisa por que se passam os olhos da cara de manhã e o olho do cu à noite». Actualmente já somos um país moderno e só mesmo de manhã é que as gazetas ainda têm (quando têm) alguma utilidade. Depois, o seu fim mais feliz será, quanto muito, a reciclagem, já que mesmo a pouco nobre função de forro-de-caixote-do-lixo foi transferida nos últimos anos para ao sacos de supermercado. Mas há coisas que deveriam perdurar para lá do destino precário que está reservado aos periódicos. É na tentativa de contrariar esse fatal e vil apagamento de alguma memória impressa em papel de jornal que vos proponho este livro.
Nos já mais de vinte anos que levo de redacções, tive, entre outras coisas, o privilégio de contactar – em diferentes ocasiões e, nalguns casos, reiteradamente – com alguns homens e mulheres que marcaram a vida e a cultura da segunda metade do século XX. Confesso que, frequentemente, sobretudo nos primeiros tempos, dei razão ao Duda Guennes, meu amigo e camarada de penar, que, com a ironia que lhe é costumeira, comparava o ofício do repórter de espectáculos (podia dizer repórter cultural, mas não quero ofender ninguém) ao de um sumo-sacerdote que é o intermediário entre os deuses e o povo. Na verdade, se em alguma coisa posso estar grato ao mister que escolhi e a que tenho dado o essencial da minha vida, é justamente pela possibilidade que me deu de conhecer algumas pessoas de excepção. Também houve desilusões, é certo, mas ainda assim julgo que o balanço é francamente positivo.
Relendo as prosas aqui e agora reunidas, verifico que nenhum destes discursos é papel de cenário, muito embora sejam falas de homens e mulheres de cena. Gente de palcos diversos, que procurei conhecer e dar a conhecer para lá da imagem pública – sabendo embora que, ao fazê-lo, estava a participar na construção dessa mesma imagem. É inevitável que assim seja, sobretudo na imprensa escrita. Mas isso não é necessariamente pernicioso, nem compromete o objectivo da prosa. Pelo contrário, pode mesmo engrandecê-lo, se o repórter e o reportado forem gente de bem.
O escritor António Lobo Antunes tem razão quando afirma – à semelhança do que também defende Baptista-Bastos, praticante maior desta arte – que fazer uma entrevista é, de certo modo, escrever uma ficção: é o narrador (o jornalista) quem determina a forma como os personagens (os entrevistados) surgem perante o leitor, e é também ele quem traça as linhas mestras da história – o diálogo propriamente dito. A condição paraliterária deste género jornalístico específico faz com que o mais fascinante entrevistado não resista a um prosador bárbaro, tal como o mais desqualificado dos interlocutores pode passar a dono de um discurso fluente perante um penógrafo de gabarito. Não tenho a pretensão de me incluir entre estes, mas também creio não ser um daqueles.
Uma entrevista é um jogo em que uma das partes quer saber e a outra quer que se saiba, sendo que os objectivos do inquisidor e do inquirido nem sempre coincidem. Como neste jogo não tem forçosamente que haver vencedores e vencidos, não sou dos que pensam que uma entrevista agressiva seja sempre a melhor, mas menos ainda aceito o princípio da subserviência do perguntante. Lealdade, sempre, mas convém que a cumplicidade entre as partes fique por aqui. Os critérios éticos e os compromissos de honra devem ser os únicos limites do jornalista incumbido de interrogar, e o interlocutor ideal é aquele que responde tanto melhor quanto mais inteligentes são as questões colocadas. Não há nada pior para um entrevistador do que um entrevistado sem ideias – e vice-versa.
O que vão ler de seguida são, portanto, dez entrevistas, de diferentes formatos e realizadas em circunstâncias diversas, com pessoas de primeira linha – e de primeira água – que, por força da sua actividade criadora, conquistaram o respeito do mundo. Como creio que facilmente se entende pela leitura das suas palavras, muitos destes homens e mulheres, além de artistas de méritos universalmente reconhecidos, são também pessoas fascinantes. E o universo em que habitam é também, com frequência, uma motivação para o deslumbramento. Por isso tentei, desde cedo, pôr em prática uma regra básica que qualquer repórter deveria ter sempre presente: estar aberto ao fascínio, mas não me render a ele a ponto de correr o risco de cegar. Foi o que procurei fazer em cada uma destas conversas.
Mais marcadas umas do que outras pelos momentos em que aconteceram, quase todas falam, porém, das grandes questões desses tempos – e que, com um ou outro acerto, são no essencial as mesmas de agora, tanto artística como socialmente. A diferença é que, hoje, já são talvez menos os que arriscam discursos tão frontais e tão lúcidos (e, por isso, também tão afastados da esquadria aceite como politicamente correcta) como os de Ferré, Pete Seeger, Yupanqui. No essencial, não há diferenças de vulto entre as prosas que se seguem e as suas versões primitivas em papel de jornal. Os diálogos são, obviamente, os mesmos, apenas em situações pontuais expurgados de qualquer questão mais irremediavelmente circunstancial ou acrescentados de uma ou outra nota na altura esquecida no gravador. Também a estrutura narrativa se manteve na medida do possível fiel à original, mas já os textos de abertura foram quase totalmente reescritos com vista ao novo enquadramento exigido pela sua reunião em livro.
Posto isto, resta dizer que estas conversas foram maioritariamente publicadas nos semanários “Se7e” e “O Jornal”, na década de 80 do extinto século XX. A opção pelas mais antigas é deliberada, por serem estas as que estão mais longe na memória de quem alguma vez as leu – e que, para muitos, serão de todo desconhecidas. Abri uma excepção para incluir a entrevista que fiz com Chico Buarque em 1997, apenas porque me pareceu ser, de algum modo, complementar do diálogo que traváramos em Madrid nove anos antes, e que também aqui se inclui. Personagem múltiplo, repartido pela dupla condição de músico e escritor, justifica a abordagem por diferentes ângulos e em tempos distintos. Esta é também a única prosa deste lote que não veio a lume nos hebdomadários atrás citados, tendo sido originalmente publicada na revista “Ler”.
A ausência de portugueses vivos é também propositada: a sua proximidade, conjugada com o facto de continuarem quase todos perfeitamente activos, obrigaria um enquadramento diferente, que não fazia sentido para este livro. Por outro lado, o facto de serem estas entrevistas e não outras tem a ver com a capacidade de resistência à erosão do tempo de qualquer destes testemunhos de Amália Rodrigues, Atahualpa Yupanqui, Baden Powell, Chico Buarque, Juliette Greco, Léo Ferré, Marcel Marceau, Mário Viegas, Pete Seeger e Sting. O mérito é obviamente deles, para quem vão os meus primeiros agradecimentos.
Para a reunião destes textos contribuiu ainda o apoio solidário de diversos amigos, e por isso tenho obviamente que estar grato à Edite Soeiro e à Manuela Crispim, cuja cumplicidade foi o melhor dos incentivos, mas também a Avelino Tavares, Carla Amaro, José Plácido Júnior, Leonor Nunes, Maria Armandina Maia, Teresa Gonçalves, Vergílio Alberto Vieira e Zetho Cunha Gonçalves que, por palavras e obras, me ajudaram a levar por diante este projecto. E ao Jorge Araújo, que acreditou nele.
Uma palavra de reconhecimento, ainda, para os meus camaradas de ofício a quem se deve a ilustração fotográfica destas aventuras: os repórteres Fernando Negreira, Fernando Peres Rodrigues, Inácio Ludgero, Joaquim Bizarro e Joaquim Lobo, que com grande competência as testemunharam e registaram, Carlos Cáceres Monteiro, director da revista “Visão”, que disponibilizou as respectivas provas materiais, e Acácio Madaleno, que pacientemente as digitalizou para publicação neste volume.
Ao leitor, objectivo último deste conjunto de prosas, resta-me desejar que o usufruto dos diálogos que se seguem seja tão prazenteiro como foi a sua produção. Eu sei que nenhuma conversa é eterna, mas também sei que todas estas, de um ou de outro modo, foram sempre conversas ternas – e só por isso é que resultaram nestas histórias. Porque, repito, este é um livro de histórias. Histórias fantásticas, porque verdadeiras. E o resto é conversa.
Introdução a Bocas de Cena - edição Campo das Letras, Porto, 2003