Contas à Democracia

Contas à Democracia
Opinião de Teresa Sá Couto

Não é filósofo, nem sociólogo, tampouco analista político. Viriato Teles é apenas um português embrenhado no seu tempo, que vive a vida interpelando-a, com o dom superior de saber ouvir vozes individuais para, registando-as na palavra escrita, as devolver, plenas e inquiridoras, ao colectivo a que pertencem.

Quando passa mais um aniversário da Revolução de Abril, é ele que nos desafia à reflexão sobre os caminhos da nossa jovem Democracia, com «Contas à Vida – Histórias do Tempo que passa», editado há 3 anos. São 20 conversas desatadas por entrevistas a personalidades de diversas áreas da sociedade nacional, que viveram a revolução com frémito e esperança; não lhes é perguntado onde estavam no 25 de Abril, mas onde está e para onde vai o 25 de Abril; são as parcelas da prova dos nove que nos desfralda uma verdade irrefutável: Abril está na prática quotidiana da denúncia da injustiça, no inconformismo e na luta pela felicidade, o combate que legitima o homem, agora e sempre.

Nas 330 páginas deste «Contas à Vida», não se dão respostas. Insurrecto, Viriato Teles, consegue muito mais: faz perguntas, às vezes directas, muitas vezes indirectas, sempre nascidas da interacção com os interlocutores que vão deixando escapar nostalgias, desencantos, pessimismo, mas também esperança, cônscios de que a utopia é necessária para a caminhada; as suas perguntas alcançam-nos, leitores, estimulando-nos à auto-reflexão, num parto de ideias, espécie de maiêutica socrática, mas pelo timoneiro Viriato Teles, também ele enredado no processo que criou. Aliás, esta contaminação entre autor e leitor é uma das marcas inconfundíveis do jornalista, que torna magnética a leitura dos seus textos.

Gozando de liberdade reflexiva – num livro que se propõe fazer um retrato dos caminhos da Liberdade –, surgem as 20 personalidades, dispostas de A a V: Alberto Pimenta, Alice Vieira, António Pinho Vargas, Baptista-Bastos, Edmundo Pedro, Fausto Bordalo Dias, Fernando Relvas, Francisco Louçã, Isabel do Carmo, João Soares, José Mário Branco, José Medeiros, Luís Filipe Costa, Manuel Freire, Maria Teresa Horta, Mário Alberto, Padre Mário de Oliveira, Odete Santos, Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Gonçalves, o qual tem neste «Contas à Vida» a última entrevista dada – o militar de Abril e antigo primeiro-ministro morreu em 2005 – não chegando a ver o livro, disse-nos Viriato Teles.

E depois da Festa…

«A flor não é a certeza do fruto», disse Almada Negreiros. «O dia 25 de Abril de 1974 será esquecido. É inevitável», refere Tiago Rodrigues no Prefácio, aludindo à perda do valor da Festa coroada com cravos rubros. Todavia, sugestiona-nos, é preciso esquecermos Abril para «podermos começar a pensar na próxima festa», o que nos faz lembrar da razão que tinha Natália Correia ao afirmar que «só os medíocres sabem o que fazer com a vitória»; é também no sentido da eterna construção do sonho que entendemos as palavras de José Mário Branco: «vai ser preciso fazer muitos mais vinte-e-cincos de Abril para recuperar o que se perdeu e se avançar no sentido da felicidade e da justiça da sociedade.». E não é esta energia do sonho um legado da Revolução de 1974?

Trinta e quatro anos depois das conquistas de Abril como vai a nossa Democracia, a nossa capacidade de crítica, e a nossa participação cívica?

Hoje, verifica-se perda de entusiasmo, diz a jornalista e escritora Alice Vieira, e surgem novos tipos de censura, como a «censura económica» que se alimenta da actual crise no trabalho e da fragilidade do trabalhador que necessita do pão na mesa, o que o faz calar-se perante o patrão, pois pode «ir para a rua e estão logo cinquenta» para o seu lugar.

Baptista Bastos aponta responsabilidades especiais aos partidos políticos de esquerda, aos jornais e à actual Literatura pela incapacidade de formação da massa crítica social: «O Guterres, cada vez que via um socialista ficava assustadíssimo!»; «O PCP está completamente esvaziado de conteúdo»; «os jornais não têm debate, não suscitam reflexão. Mas suscitavam no tempo do fascismo…»; «a literatura portuguesa está toda ela uma grande merda. Porque as pessoas estão a contar as suas vidinhas sem terem vidas para contar».

Apesar de nos ter restituído a cidadania, «dá a sensação que estamos cada vez mais longe dos objectivos do 25 de Abril, diz Fausto, para questionar: onde está a justiça social? Onde está garantido o direito à felicidade das pessoas quando estão à mercê de uma sociedade fortemente competitiva e onde milhares de jovens estão condenados ao desemprego, à marginalização, porque são dirigidos para se formarem em cursos completamente desadequados às necessidades do mercado e do país?».

Comentando o actual capitalismo tentacular, que debilita as ideias anticapitalistas e cria fossos sociais, João Soares nega-lhe a «inevitabilidade, porquanto reconhece nas classes mais jovens, que não se identificam com a «lógica de competição desenfreada, despudorada e feroz» do neoliberalismo, «espaço e apetite», e «uma grande vontade de construir alternativas».

«As revoluções não são apenas uma festa, isso sabemos desde o dia em que esta começou» e, por isso, «o 25 de Abril anda por aí», escreve Viriato Teles na Conclusão com que encerra as conversas. Haverá saudades? Certamente. Mas que sejam «saudades saudáveis, não nostálgicas ou melancólicas. Saudades que animam a luta pelo futuro», como as saudades assim descritas por Vasco Gonçalves. A prova desse ânimo está em nós, foi uma conquista de Abril, que este livro, em boa hora, volta a despertar. A prova está na resposta à provocação activa de Viriato Teles: «E se amanhã tivesses que dar a voz a outro 25 de Abril?». O jornalista e realizador Luís Filipe Costa responde, e na sua resposta reconhece-se a do imenso colectivo: «Ia já, a correr! (…) Desta vez não precisava nem de um minuto (…) desta vez, não vamos levar tanto tempo a acordar.»

 

Kaminhos | 25.4.2008 | Republicado em Com Livros | 10.4.2010