O dia 25 de Abril de 1974 será esquecido. É inevitável. Continuará a ser feriado, talvez durante séculos, mas não falta muito para que nos perguntemos o que é celebrado nesse dia. Como o 5 de Outubro ou o primeiro de Dezembro, será apenas um dia de honrarias de Estado, sem festa, incapaz de animar esperanças. Podemos fazer força para que demore muito a chegar, mas sabemos que chegará o tempo em que ninguém se vai lembrar de usar cravos na lapela ou nos cabelos. É o destino implacável do dia em que foram felizes os homens e mulheres que falam com Viriato Teles neste livro.
No início de cada uma das entrevistas deste livro, é anunciado o lugar onde estava o entrevistado no dia 25 de Abril de 74, como se o autor colocasse bandeiras vermelhas num mapa. Porém, nesse dia, eu ainda não existia. Só apareci no mapa quase três anos depois da revolução. Sou da primeira geração que nasceu em democracia. Viriato Teles, que é homem de cumplicidades e domador de uma escrita selvagem onde a amizade nunca está ausente, piscou-me o olho, certo da provocação que seria pôr um puto sem memórias de Abril a escrever o prefácio desta obra.
Saberia Viriato Teles, no momento em que me lançou o desafio, que me entalava a ética e os dedos mais aptos a escrever em língua portuguesa? Os mistérios da criação são insondáveis. A verdade é que a única missão que me pode ser confiada no prefácio deste livro é a de relativizar as memórias, as ideias e as confissões daqueles que viveram Abril a cem por cento. Precisamente porque eu não vivi Abril, mas todos os meses que lhe sucederam. A revolução, por muito amor, ternura e respeito que lhe tenha, é algo que me foi emprestado em segunda mão. O que posso ser neste prefácio senão uma voz, mesmo que débil e disparatada, do futuro?
Por isso não hesito em revelar o que o futuro reserva a Abril de 74 e que é apenas e só o esquecimento. É certo que os livros de História não deixarão de mencionar a revolução sem sangue, com mais ou menos branqueamento dos acontecimentos. É certo que haverá sempre flores depositadas por estadistas graves. Mas a festa, o prazer, a memória sorridente vão diluir-se em levas e mais levas de vindouros – «cabrões de vindouros», diria o José Mário Branco – que têm outras preocupações e menos memória ainda que eu.
É porque Abril vai ser esquecido que é tão importante este livro de Viriato Teles, esta colecção de conversas disfarçadas de entrevistas que não sabem, nem querem, mascarar as cumplicidades que cercam cada pergunta e cada resposta. Porque a grande questão que se nos coloca é como vamos esquecer Abril. Vamos deixar que vão roubando letras e depois sílabas até que roubem por inteiro a palavra revolução? Vamos deixar que se amestre a memória de modo a que Abril sobreviva em versão tão soft que nunca mais possa servir de inspiração a quem tenha necessidade de sonhar mais hard? Ou vamos enterrar o 25 de Abril com dignidade, desligar a máquina que o mantém vivo, depois de deitar cá para fora todos os sonhos, todas as recordações de alegrias e fracassos?
O futuro é ingrato e por isso não irá recordar tudo o que deve a Abril de 74. No futuro, esta revolução vai resumir-se a um livro de actas. E é essencial que as actas de Abril de 74 não sejam apenas a gramática dominante dos ministérios e dos historiadores. É importante contaminar as actas, as circulares e os ofícios que ficarão para a posteridade com aquilo que estas entrevistas nos repetem a cada página: Abril também foi uma festa.
Nas suas contas à vida, Luís Filipe Costa diz que no estrangeiro «fala-se da festa que foi a Revolução Portuguesa, muito mais do que em Portugal. Nós perdemos essa dimensão daquela festa que vivemos». E é das memórias do «sonho lindo que acabou», com a sua música, poemas e aventura política, que Viriato Teles quer saber nas suas perguntas. Este livro é o relato, a várias vozes, de uma festa, da ressaca e de como vivem hoje os que tomaram parte na festa.
Ao escolher os seus entrevistados, é nítido que o autor teceu uma teia de afectos que nos enreda à medida que vamos mergulhando neste livro com o vagar das coisas que realmente dão prazer. Mais do que o papel do entrevistador, Viriato Teles encarna o mestre de cerimónias de uma festa que já só acontece na memória de quem aceitou sentar-se a falar. Como num encontro de velhos amigos, há ternuras e rancores antigos, confissões, relatos do que se passou desde o último encontro. E percebemos que os entrevistados, muitos deles protagonistas da revolução, formam um caleidoscópio de palavras que é também a memória que o perguntador quer pintar da «sua revolução». Jornalista e poeta de generosidades, Viriato Teles só pode relatar o seu 25 de Abril nas palavras dos outros e fá-lo com arte e minúcia próprias de mestre ourives. Se vamos esquecer Abril, que seja com este livro.
A atravessar as conversas, há também o descontentamento de quem sonhou plenamente. Alice Vieira desabafa que, há trinta anos, «não era isto que nós queríamos» enquanto Fausto Bordalo Dias confessa «o amargo de boca». A verdade é que os homens e mulheres que falam com Viriato Teles são, ao mesmo tempo, vencedores e vencidos de Abril. Mas cada conversa é uma reafirmação de esperança, de vontade de continuar a meter o pé à bola. «Vai ser preciso fazer muitos mais vinte-e-cincos de Abril para se recuperar o que se perdeu e se avançar no sentido da felicidade e da justiça da sociedade», diz José Mário Branco. Talvez por isso seja tão importante esquecer Abril. Deitar contas à vida é esquecer a angústia de ter deixado tanto por fazer para que possamos ocupar-nos do muito que há por cumprir. Só haverá outro 25 de Abril quando este for esquecido, tão esquecido que o próximo pareça o primeiro e o possamos celebrar como um golo surpresa marcado do meio campo.
Como escrevia Jean Anouilh, no final da sua versão da tragédia de Antígona, o tempo vai passar até que as pessoas comecem a confundir ligeiramente os nomes dos protagonistas e acabem, como é inevitável, por esquecê-los para sempre. Viriato Teles sabe disto. Sabe que o 25 de Abril será esquecido, mas que um dia, num futuro próximo ou longínquo, alguém quererá recordá-lo e talvez reinventá-lo. Com este livro, temos a certeza de que será lembrado como a festa de um país que teve esperança. A uma geração mais velha, este livro servirá para recordar e, justamente, deitar contas à vida. Mas às gerações mais novas e às que aí vêm, não tenho dúvidas, que é um livro que fará sonhar com mais vinte-e-cincos de Abril. Contas à vida é a melhor forma de esquecermos o 25 de Abril de 1974 e podermos começar a pensar na próxima festa.