Contas à vida sem ajuste. Mais cansaço do que desalento. Mais sonho adiado do que utopias erradas. Mais que documentos são testemunhos estas vinte entrevistas: uns, mais intimistas; outros, mais interventivos.
Encontramos neste livro um universo multifacetado, mas que tem uma matriz política, ética, estética e cultural, o 25 da nossa memória, como que pequenos afluentes que vão desaguar no grande rio.
Coabitam gerações, em termos etários e políticos, e muito exílio, interior e exterior. Algumas, memórias dilaceradas; outras, pedras vivas de arremesso e protesto, numa intifada ausente. Mas também agentes do poder que por ele foram cativados e por ele abandonados. Diz Alberto Pimenta no seu testemunho: «O poder não obriga forçosamente a perder a consciência, mas obriga sempre a perder a pureza.»
Seria injusto singularizar alguns nomes porque a riqueza deste livro e a sua unidade assentam, de forma escrita e viva, na sua diversidade. A alguns nomes, contudo, há que recorrer, não porque o seu testemunho seja mais incomodativo que outros, mas sobretudo porque abordam temas sobre os quais vale uma reflexão maior.
Companheiros, e já antigos, do mesmo ofício, o Viriato Teles e eu, partilhámos muitas cumplicidades, muito sonho e também injustiças. É Alice Vieira que diz, da sua autoridade profissional e ética: «O jornalismo, que vive de analisar documentos, devia viver muito também da sua memória. E à medida que as memórias se vão pondo de lado chega-se a esta comunicação sem memória, que fala de pessoas que não conhece, que fala de coisas… Porque não tem os velhos repórteres, os velhos jornalistas. Mas nós abrimos a televisão num canal estrangeiro qualquer e quem vemos como pivôs nos telejornais são sempre pessoas com uma idade respeitável.»
Armando Baptista-Bastos vai ainda mais longe, quando afirma que «neste momento, a perspectiva é particularmente pessimista, porque a extrema-direita está a ocupar o espaço cultural que habitualmente pertencia à esquerda, nos jornais e, também, na televisão, em particular na RTP 2» (fim de citação).
Para além da idade, da falta de memória, de um avanço da direita na Comunicação Social, com a complacência, e negligência e mesmo alguma conivência chique de certa dita esquerda, assistimos a uma nova forma de censura, o branqueamento dos factos e a eliminação de pessoas incómodas. É possível fazer uma notícia sobre prémios de jornalismo e o principal premiado, por uma nobre e honrada carreira, seja cortado da notícia, só porque o seu nome é incómodo e capaz de, em tudo o que escreve, afirmar que o rei vai nu.
Mas já gastámos muito tempo com criaturas cultoras e devotas do índez, maneirinhas e subservientes.
Sobre nós desceu o crepúsculo. Sente-se em algumas palavras, no deslizar sofrido da memória de um tempo mal realizado, de um lugar por habitar. A utopia, esse não-lugar que todos procuramos, não fosse um marinheiro português a inventá-lo, em mentira de porto.
Mas a procura desse não-lugar é que é bonita, mesmo comovente em muitos dos depoimentos, mais testemunhos que rasgam as cicatrizes e reabrem feridas, do que as grandes teorias, académicas ou menos académicas, mais oportunistas do que oportunas, do que foi e/ou poderia ser feito.
Todos os testemunhos são manifestações de resistência: seja na política, na música, na luta pelos direitos da mulher, quer na violência armada, na prisão e nas prisões, na arte, na relação com a Igreja e na denúncia dos seus maiores embustes, da infalibilidade do Papa à mentira de Fátima.
As máquinas vorazes, os media, estão pouco interessados na memória das pessoas de carne e osso, como as que se instalam e ocupam de pleno direito as páginas deste livro. Hoje, a representação é a realidade.
Não me canso de contar uma pequena história que me faz ver, com outros olhos, o quotidiano que me rodeia mas a que quero ser alheio. Estava uma senhora, acompanhada da filha, uma linda criança, na bicha da caixa de um supermercado. Uma outra senhora ao lado olha para a criança e não resiste a comentar: «Mas que criança tão linda». A mãe, embevecida, agradece e responde: «E a senhora ainda não viu a fotografia».
Que é que temos a dizer aos outros, que preferem o sucesso à realização, que preferem a ostentação da mediocridade ao despojamento interior, à partilha, à solidariedade, à cidadania vivida e praticada?
Eis senão quando, pela madrugada, no tempo intenso que medeia e separa a luz das trevas, vamos espalhando um regato de cinza que nos conduz à margem do rio. E pensamos sempre e desejamos sempre: temos que alcançar a outra margem do rio, onde vibra um violino, ainda que em surdina.
Aí vamos nós ou os que depois de nós vierem, para um novo Abril, sem data marcada. Porque aquela margem é o que nos falta. Mas alguns, ou outros por nós, desculpem a transgressão sintáctica, havemos de lá chegar. Não sabemos é quando. Mas não vale desistir. Até, se não pudermos ser felizes, procuremos ao menos ser justos.
Apresentação de Contas à Vida | Voz do Operário - Lisboa | 29.9.2005