O desvio de cerca de um milhão de contos dos cofres da Exposição Mundial de Lisboa é a prova definitiva de que o portuga médio não dá ponto sem nó e aproveita todas as oportunidades para sacar algum. Depois das Descobertas, de Macau e dos fundos europeus, chegou a vez de a Expo 98 dar de comer a mais uns quantos tubarões. Que nem sequer vivem no Oceanário.
A notícia caiu como uma bomba - pelo menos é isto que costuma dizer-se em situações como aquela que, há pouco mais de uma semana, sacudiu o país, tornando-se assunto de abertura de todos os noticiários e manchete em todos os jornais. Num ápice, um milhão e 300 mil contos desapareceram sem deixar rasto, diluídos nas contabilidades da Parque Expo SA e da cooperativa de habitação Mar da Palha - de cujos corpos gerentes, certamente não por acaso, faziam parte dois dos altos funcionários da Expo agora apontados como suspeitos das diversas fraudes detectadas nas contas da empresa responsável pela gestão da exposição de Lisboa.
Ficou assim a saber-se que - apesar da inquestionável modernidade do evento, apesar das tecnologias imensas de que é possível desfrutar no rectângulo que vai da Matinha ao rio Trancão, apesar das centenas de polícias, seguranças privados, seguranças públicos, agentes do SIS e outros funcionários empenhados em fazer da exposição de Lisboa um enorme sucesso nacional e internacional - ficou a saber-se, dizia, que há ratos na Expo. Ratos, que digo eu? Ratazanas, isso sim, e das maiores, daquelas que já conhecem de cór todos os truques para evitar as ratoeiras, os raticidas e os venenos mais implacáveis.
No entanto, só para os mais ingénuos (ou menos atentos) o buraco contabilistico agora descoberto pode constituir verdadeiramente uma surpresa. Desde o princípio que as contas da Expo apresentavam particularidades no mínimo estranhas para um empreendimento desta natureza - e o caso da Gare do Oriente é talvez o exemplo mais significativo: orçamentado em 14 milhões de contos, o seu custo final acabaria por ficar em mais do dobro - 32 milhões, nem menos - o que faz deste o apeadeiro ferroviário mais caro do mundo, uma vez que, terminada a Exposição, a Gare do Oriente passará a ter a mesma função das estações de Moscavide, Braço de Prata ou Sacavém, continuando a velhinha Santa Apolónia a funcionar como estação central.
A estratégia do rapinanço
O desvio - chamemos-lhe então assim - de mais de um milhão de contos dos cofres da Parque Expo é apenas a prova mais recente desse "talento doloroso e obscuro" (Herberto Helder que me perdoe a paráfrase) que os portugueses, ao longo de nove séculos de História, nunca deixaram de demonstrar. Falo, claro, desta tão lusitana tendência para o pequeno e médio golpe, a manha mais ou menos ardilosa, o rapinanço ocasional ou sistemático.
É uma tendência ancestral, cujas origens podem ser encontradas já no tempo de Afonso Henriques (Portugal foi, como se sabe, um grande produtor de cruzados para as "guerras santas" contra a moirama) que, à conta da dilatação da fé - o império veio alguns séculos mais tarde - se entreteve a saquear cidades inteiras e a destruir quase todos os vestígios da riquíssima cultura árabe em Portugal. Nesse aspecto, bem pode dizer-se que a lógica da guerra não evoluiu muito nestes últimos nove séculos: o saque, a pilhagem e o aviltamento continuam a ser praticados da mesma maneira nos conflitos armados da actualidade.
Com os Descobrimentos, o gamanço deixou de ser uma simples "consequência inevitável" da guerra. Institucionalizou-se de tal maneira que até o Papa achou ser um dever sagrado abençoar a partilha do mundo entre portugueses e espanhóis, de modo a facilitar a rapina das regiões "descobertas" pelos navegadores dos dois reinos ibéricos. O resultado foi o que se viu: séculos e séculos de pilhagem descarada, o genocídio de povos inteiros e a submissão do mundo aos interesses ocidentais - que perdura ainda hoje, se bem que os centros de decisão já não se encontrem em Lisboa e Madrid, mas sim em Washington, em Paris ou em Berlim.
Actualmente, por força das regras civilizacionais, a depredação já não pode ser feita da mesma maneira. Há que ser mais astuto e menos óbvio, ainda que os objectivos sejam, basicamente, os mesmos. O (ainda) administrativamente português território de Macau tornou-se no símbolo maior deste "fartar vilanagem", onde não falta quem aproveite o tempo que resta para abanar até à exaustão a árvore das patacas - expressão que, neste caso, pode e deve ser entendida no seu sentido literal.
Mais recentemente, a integração de Portugal na Comunidade Europeia veio proporcionar uma nova e dourada oportunidade a todos os amantes do dinheiro fácil. Ele foram fundos estruturais, fundos de coesão, subsídios de Bruxelas, financiamentos de Estrasburgo, feders, pacs, pedips - enfim, um sem número de fontes de receita que só mesmo os mais tolos (entre os quais se conta, desgraçadamente, o autor destas linhas) não souberam ou não quiseram aproveitar.
Imoral da história
Dirão os leitores que as características atrás enunciadas não são um exclusivo dos portugueses e que a corrupção faz parte da natureza humana. Que piores do que os Gamas e os Albuquerques foram os piratas de Inglaterra e da Holanda - para já não falar de Cortéz e de toda a chusma castelhana que, num abrir e fechar de olhos, transformou as nações inca e azteca numa simples recordação. Poderão até alegar, em defesa da nossa honra colectiva, que, no que respeita ao aproveitamento ilícito dos dinheirinhos europeus, não chegamos sequer aos calcanhares dos gregos e dos italianos.
Será tudo verdade (ou quase) e pode mesmo dizer-se sem receio de errar que em todas as grandes realizações há sempre quem se aproveite dos números com muitos zeros para, com maior ou menor discrição, tirar para si algum proveito pouco honesto. Aliás, em matéria de exposições mundiais, a fraude agora detectada em Lisboa está longe de ser um caso inédito.
Ainda no último sábado o "Expresso" noticiava que a Expo 92 de Sevilha continua a ser investigada pelos tribunais espanhóis, devido a "perdas não declaradas" no valor de 130 mil milhões de pesetas (mais de 150 milhões de contos, ao pé dos quais o milhãozito desviado em Lisboa não passa de uns trocados) a que se juntam as fortes suspeitas de favorecimento de empresas e personalidades próximas do então primeiro-ministro Felipe González.
E se é um facto que "a ocasião faz o ladrão", também não deixa de ser verdade que, à boa maneira orwelliana, todos os ladrões são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros. Prova disso é que, seis anos após o encerramento da Exposição Universal de Sevilha e apesar de todos os indícios de corrupções diversas - a começar pelos altos responsáveis, que terão atribuído a si próprios indemnizações ilegais num montante superior a 1500 milhões de pesetas (quase dois milhões de contos) - nem um só gestor do evento foi a tribunal.
O que irá acontecer aos autores da burla lusitana é ainda uma incógnita. Para já, a preocupação central da Polícia Judiciária é descobrir a verdadeira dimensão das fraudes praticadas e o paradeiro do dinheiro desaparecido. No entanto, é bem provável que o resultado final venha a traduzir-se em qualquer conclusão do género "a culpa é de todos em geral, mas não é de ninguém em particular". Afinal, sempre é um "desvio" superior a um milhão de contos. E, nisto como em tudo o resto, poderá muito bem aplicar-se a velha máxima popular segundo a qual quem rouba um pão é um ladrão e quem rouba um milhão é um barão...
Grande Amadora | 21.Ago.1998