A cobiça é fraca melhor dizer
A vida não presta para sonhar
(...) Sou como o morcego vejo sem ver
Sou como o sossego sei esperar
José Afonso, «Canção da Paciência»
Há pessoas assim: capazes de observar e transformar a realidade à medida das utopias e dos desejos, conhecedores profundos da natureza humana, das suas contradições e fragilidades. São estes, regra geral, os homens e as mulheres que, por pequenos gestos e atitudes imperceptíveis, conseguem criar uma harmonia quase perfeita à sua volta, mesmo nos tempos mais conturbados e perante as situações mais adversas.
Américo Teles* foi um destes homens. Habituado a respeitar a criatura humana acima de todas as coisas – à excepção da Natureza, mãe de tudo o resto – , ele conseguiu, como poucos, realizar uma obra que vale, sobretudo, pela enorme generosidade e pela incomparável dignidade que foram características fundamentais de toda a sua vida. Quem o conheceu sabe que não existe nestas palavras ponta de exagero ou qualquer benevolência causada pela proximidade existente entre nós, mas apenas um retrato, necessariamente incompleto de alguém cuja vida foi o melhor dos exemplos.
É-me particularmente difícil recordar sem emoção a sua figura de patriarca, elo essencial de uma nem sempre fácil unidade familiar, para quem o diálogo foi sempre preferível à confrontação. Com ele aprendi que a vida vale mais a pena pelo que podemos dar do que pelo que esperamos receber. A sua crença profunda nos valores humanos (hoje submersos por um consumismo individualista e atabalhoado que põe em causa todas as regras de convivência) levou-o a agir sempre de acordo com um profundo respeito pelos seus semelhantes, mesmo quando daí resultavam desilusões e desencantos – e muitas vezes isso aconteceu.
Quem, como eu, optou pelo ofício de informar, deve utilizar as palavras com rigor. E por isso me atrevo a dizer que não imagino outro alguém que não este D. Quixote, armado apenas de uma férrea vontade e de uma profunda noção do porquê da existência, que fosse capaz de alimentar, ao longo de tantos anos, um sonho como aquele a que Américo Teles entregou a sua vida e que constitui hoje um repositório único da história de Ílhavo – e quem diz Ilhavo, diz o mar, razão de ser das suas gentes. Falo, como é óbvio, do Museu Marítimo e Regional, memória colectiva da nossa terra, considerado hoje pelos especialistas como um dos mais importantes museus temáticos portugueses e europeus. O desrespeito crónico do nosso país pelas questões culturais (encaradas, ainda hoje, por muita gente com responsabilidades governativas como um pormenor supérfluo do quotidiano) fez com que a peleja de Américo Teles em prol do Museu tivesse, por vezes, os contornos de uma luta entre David e Golias. Mesmo assim, todas as dificuldades foram superadas com um sorriso benévolo e uma verdadeira paciência oriental, e não me lembro de que alguma vez tenha pensado em desistir.
Esta perseverança, a sua enorme capacidade dialogante, o seu horror pelas injustiças e pelos atropelos à dignidade do Homem e da Natureza, o carácter intrinsecamente bom de Américo Teles foram, para mim, talvez a maior das escolas. Por motivos profissionais, tenho tido a possibilidade de contactar com pessoas dos mais diversos lugares do mundo. Gostei mais de conhecer umas do que outras e com todas elas tentei descobrir novos horizontes. Mas não consegui nunca encontrar quem, de forma tão soberanamente simples e materialmente tão desinteressada, resumisse todas as virtudes que nele encontrei.
Da última vez que conversámos, no Porto, pouco tempo antes da sua morte, a organização e o futuro do Museu de Ílhavo ocuparam (como sempre) a maior parte do nosso diálogo. Lembro-me de que foi essa a única vez que vislumbrei nele uma réstia de desânimo. Estava pronto para aceitar a morte, com a mesma naturalidade que caracterizou todos os seus actos em vida. Tranquilamente, disse-me que estava no fim. E deixou escapar uma lágrima ao falar das filhas e dos netos, como se dissesse: «Vou ter saudades». Depois, contou-me as suas aspirações imediatas para o Museu e de novo o olhar se lhe iluminou com a imensa sabedoria dos seus 95 anos, uma serenidade misturada com a inquietação de quem tem um sonho para cumprir. E, com a mesma lucidez de sempre, manifestava a sua preocupação pelos destinos da casa que foi o seu sonho maior. Fazer dessa casa um espaço vivo de cultura e não deixar que ela se transforme num simples armazém de antiguidades, é uma obrigação nossa. E é, também, a melhor homenagem que poderemos prestar-lhe.
* Fundador do Museu Marítimo de Ílhavo e último grande patriarca da Família, Américo Teles nasceu em Ílhavo a 19 de Setembro de 1893 e faleceu no Porto em 6 de Julho de 1989.
In Américo Teles – In Memoriam, livro colectivo de homenagemTextos de Frederico de Moura, Amadeu E. Cachim, Carlos Basto, Domingos Amador, J. Evangelista Ramalheira, João do Rio Teles, João Sarabando, J. Quintino e VTEdição do Grupo dos Amigos do Museu Marítimo de Ílhavo | 1990