Palavras Ditas - Mário Viegas - 1972
Quando, num dia de 1972, Vinícius de Moraes ouviu pela primeira vez um seu poema interpretado por Mário Viegas, não se conteve: «O que ele recitou é melhor do que o poema que eu escrevi.» O aplauso do poeta ficou registado na contracapa do disco de modo mais elaborado e menos espontâneo, mas o episódio ficou na memória de José Niza, produtor e co-responsável pela envolvência musical de «Palavras Ditas», que foi quem levou a bobina original ao «poetinha», de passagem por Lisboa.
O poema era Sob o Trópico de Câncer, uma interpretação «sensacional» e «terrificante» nas palavras públicas de Vinícius. E era um dos 12 textos sobreviventes de um lote inicial de 19 passado pelo crivo da censura e reunido num disco editado em finais desse ano: «Palavras Ditas», de um jovem e ainda pouco conhecido actor natural de Santarém, de nome Mário Viegas.
De fora ficaram poemas vários (que Viegas só gravaria depois de 1974) de Manuel Alegre, Herberto Helder, Pablo Neruda, mas ainda assim foi possível incluir textos de Jorge de Sena («Amátia»), Ary dos Santos («Epígrafe»), António Gedeão («Mãezinha»), Alexandre O’Neill («O ladrão do pão», «Uma Lisboa remanchada»), Gastão Cruz («Palavras»), Daniel Filipe («O viajante clandestino»), e até um de Manuel Alegre.
Mário Viegas não era um estreante: três anos antes gravara um primeiro disco, de pequeno formato, que era já todo um programa de vida: Armindo Rodrigues com «Homem, Abre os Olhos e Verás», António Gedeão com «Poema para Galileo», Joaquim Namorado com «Port-Wine», Reinaldo Ferreira com «Receita Para Fazer um Herói», e Manuel Alegre com «Lisboa Perto e Longe» e «Poemarma», eram os poetas (e os poemas) escolhidos por Mário Viegas para o disco de estreia. Tinha apenas 20 anos, mas sabia muito bem o que queria.
Em 1972, Portugal era um lugar cinzento e desencantado. O salazarismo não morrera com Salazar, finado dois anos antes, e a “primavera marcelista” que muitos julgavam possível rapidamente descambara num outono que parecia não ter fim.
Nesse tempo de resistência e de coragem, há no Porto um editor discográfico que, por gosto ou por visão ou por ambas as coisas, não se resigna à mediocridade dominante. Chama-se Arnaldo Trindade e publica discos que quase mais ninguém se atreve a publicar. Adriano Correia de Oliveira e José Afonso são os nomes mais sonantes do catálogo da Orfeu, a etiqueta que ao longo de mais de vinte anos deu a conhecer muito do que de melhor se fez na música portuguesa. E na poesia também.
A edição de poesia foi, desde o início, uma aposta de Arnaldo Trindade e da Orfeu, que nos anos 50 publicou uma preciosa «Antologia da Poesia Portuguesa»: um conjunto de discos de 33 rotações em pequeno formato com gravações de Aquilino Ribeiro, Daniel Filipe, Eugénio de Andrade, Ferreira de Castro, José Régio, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner – quase todos os nomes maiores da literatura portuguesa do século XX.
E foi também Arnaldo Trindade quem publicou os primeiros discos – e quase todos os que se seguiram – de Mário Viegas. Em 1972, «Palavras Ditas» marcou o início de uma nova era na arte de dizer. E, mais de 40 anos depois, continua a ouvir-se com renovado prazer. Pela poesia, mas sobretudo pelo enorme, luminoso talento da voz que lhe dá vida.
/** * Individual Script for nx-YouTubeBox Instance * @package nx-YouTubeBox * * @copyright Copyright (C) 2009 - 2017 nx-designs. * @license GNU General Public License version 2 or later */ defined('JPATH_PLATFORM') or die; ?>Triângulo do Mar - Carlos Mendes - 1982
Tudo começou no Verão de 1981. Ao tempo, Carlos Mendes era já dono de um percurso musical de quase duas décadas, iniciado aos 16 anos nos Sheiks (a que, ora como elogio, ora depreciativamente, havia quem chamasse “os Beatles portugueses”), e tinha-se afirmado nos últimos anos da ditadura e nos primeiros da democracia, primeiro como intérprete, depois também como compositor de mérito. Por duas vezes vencedor do Grande Prémio RTP da Canção e representante de Portugal no Festival da Eurovisão num tempo em que esse era um evento importante, foi também muito através de Carlos Mendes que o poeta Joaquim Pessoa se revelou ao mundo, com “Amélia dos Olhos Doces” e outras canções que marcaram a música portuguesa.
Mas nesse início de década Carlos Mendes tinha outras ambições. Musicais, sobretudo. Pela Música já tinha abandonado a Arquitectura, outra arte para que estudou. E agora decide ser outro, sem nunca deixar de ser ele. Acrescentando-se e aventurando-se em novos caminhos.
Nesse ano, conjugam-se as vontades e as realidades. Mendes cruza-se com Fernando Girão, o músico luso-brasileiro que o aproxima às artes de Ivan Lins e Gilson Peranzetta. E convive de perto com um conjunto de outros músicos e paramúsicos com ideias sobre os rumos que a música portuguesa poderia seguir. Gente com opiniões, saberes e experiências tão distintas como Luís Villas-Boas, Eduardo Paes Mamede, Fernando Chaby, Dinis da Gama, José Fortes, Edmundo Silva, António Macedo e até o ora escrevente (a lista dos “cúmplices” está na dedicatória impressa na contracapa do álbum) participam, por junto ou à vez, nos muitos dias, tardes e noites de divagações musicais que antecederam a concretização deste Triângulo do Mar.
É preciso que se diga: este foi um trabalho de paixão e de partilha como terão sido poucos discos feitos em Portugal. Através dele, Carlos Mendes quis cruzar as linguagens musicais e poéticas de língua portuguesa: Portugal, África e Brasil são os vértices do triângulo onde pode caber toda a música, ou quase. E foi isso que Carlos Mendes quis fazer, a partir de textos de Ernesto Lara Filho, José Manuel Mendes, José Jorge Letria ou Joaquim Pessoa, misturando géneros e lugares e sons e sentimentos.
O disco, gravado em princípios de 1982 por José Fortes e Rui Novais no então ainda jovem Angel Studio, reuniu um conjunto de músicos de proa, para lá de Mendes e Girão: Emílio Robalo e José Carrapa, Quim M’Jojo e Zezé N’Gambi, Chico Zé e Mário Jorge, Jorge Nascimento e Raul Mendes. E participações, avulsas e muito especiais, de José Nogueira, Fausto e Alfredo Vieira de Sousa. E as vozes de Madalena Leal e Argentina e Maria Viana e de um coro da embaixada de Angola. Uma festa, pois.
Dito assim, 35 anos depois, tudo isto pode parecer coisa de somenos. Mas para se aquilatar da dimensão da aposta e do sonho que foi Triângulo do Mar, tenha-se em conta que foi com ele e a partir dele que a editora Sassetti criou a “etiqueta” com que iria publicar alguns importantes discos de música popular, de Fausto a José Afonso, desse ano e dos seguintes: Triângulo, precisamente, com a referência primeira, TR 001, a ser atribuída ao disco de Carlos Mendes.
Sim, é verdade, nessa altura gravar e publicar um disco era mesmo um acontecimento. E que bem que este soube.
Por Este Rio Acima - Fausto Bordalo Dias - 1982
Em estado de graça. Foi assim que ficou o jovem repórter a quem no ano de 1982 coube em sorte ser dos primeiros ouvintes de Por Este Rio Acima. Em sorte, sim. Porque não é todos os dias que se assiste à construção da História – sobretudo tendo consciência disso.
Não sei como é com vocês, mas eu confesso que tenho dificuldade em imaginar o mundo sem algumas obras-primas – das artes em geral e da música em particular – que fazem parte das nossas vidas. Viveríamos da mesma maneira caso Beethoven não tivesse escrito a Quinta Sinfonia? Como teriam acabado os anos 60 se os Beatles não tivessem gravado Sgt Pepper’s? Até que ponto cada um de nós seria aquilo que hoje é se não tivéssemos escutado os Pink Floyd na idade de todos os sonhos?
São perguntas sem resposta possível, mas que coloco também a propósito de alguns – muito poucos, mas muito bons – trabalhos discográficos feitos em Portugal. Quanto ao resto não sei, mas não tenho dúvidas de que a música portuguesa seria outra coisa se Amália não tivesse cantado Estranha Forma de Vida, se Carlos Paredes nunca houvesse criado Movimento Perpétuo, se José Afonso não gravasse Cantigas do Maio. Ou se Fausto Bordalo Dias não escrevesse Por Este Rio Acima.
Não que estas criações sejam necessariamente «o melhor» de cada um dos respectivos criadores – mas porque cada uma delas representa um «corte epistemológico» relativamente à música do tempo em que foi feita. É isso, e apenas isso, que faz de Por Este Rio Acima um disco a todos os títulos histórico, já que antes de depois dessa obra Fausto criou alguns dos mais belos temas da música portuguesa de todos os tempos – de "Rosalinda" a "Atrás dos Tempos", passando por todo O Despertar dos Alquimistas, pela revisitação da infância de A Preto e Branco, pelo reencontro com a Europa de Para Além das Cordilheiras, ou pelo resto da viagem contada e cantada em Crónicas da Terra Ardente e Em Busca das Montanhas Azuis, os dois outros títulos da trilogia de Fausto sobre a diáspora portuguesa.
Mas, tal como sucede na literatura com obras que criaram um antes e um depois de (como Os Lusíadas ou Dom Quixote ou Os Maias), também Por Este Rio Acima tem em si esse crédito histórico dos clássicos referenciais que marcam uma era. Porque, de facto, a «luz» contida neste(s) disco(s) era suficientemente brilhante para encandear tudo em volta e incandescer os tempos que se seguiriam. Depois dele, nada voltaria a ser como era. E assim foi.
Por Este Rio Acima é um disco importante não tanto por ter sido uma obra "iniciática" em 1982 como por continuar a sê-lo três décadas e meia depois – e imagino que assim será ainda por muito mais tempo, já que o tempo não deixa marcas nestas canções de amor e identidade que recriam e renovam a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto usada por Fausto como ponto de partida para este disco.
O "estado de graça" atingido pelos que ouvi(ve)ram este disco no ano de 1982 é irrepetível para quem lá esteve, mas continua ao alcance de qualquer novo audiente. Com uma vantagem do ouvinte de hoje sobre o de há 34 anos: tudo o que o Fausto fez depois já existe, pelo que o ponto de partida se pode agora confundir com o ponto de chegada. Para nosso (muito bom) proveito.
Textos incluídos em Cento e onze discos portugueses - A música na rádio pública
Ed.Afrontamento | RTP | Antena 3, 2017Livro colectivo com textos de Adelino Gomes, Álvaro Costa, Ana Cristina Ferrão, Ana Markl, Ana Sofia Carvalheda, André Cunha Leal, António Freitas, António Macedo, Armando Carvalheda, David Ferreira, Edgar Canelas, Fernando Alvim, Henrique Amaro, Inês Menezes, Isilda Sanches, Jaime Fernandes, João Almeida, João Carlos Callixto, João David Nunes, João Gobern, João Lopes, Joaquim Paulo, José Duarte, José Mariño, Júlio Isidro, Luís Filipe Barros, Luís Montez, Luís Oliveira, Luís Pinheiro de Almeida, Maria João Serra, Mário Lopes, Miguel Esteves Cardoso, Nuno Artur Silva, Nuno Calado, Nuno Galopim, Nuno Markl, Nuno Reis, Pedro Gonçalves, Pedro Castelo, Pedro Félix, Pedro Ramos, Ricardo Alexandre, Ricardo Saló, Ruben de Carvalho, Rui Estêvão, Rui Miguel Abreu, Rui Pêgo, Rui Portulez, Tiago Pereira, Viriato Teles e Zé Pedro.
Coordenação editorial de Henrique Amaro e Jorge Guerra e Paz