O humor não é igual para todos e diz-me a experiência que mais difícil do que fazer humor é falar dele. Mas pior ainda é tentar encerrá-lo num conceito que possa satisfazer toda a gente. Afinal, de concreto, só existe a certeza da origem científica da palavra, comprovável em qualquer dicionário de qualidade média: o latim umor (fluido) que se transmudou no galicismo humor, hoje usado em diversos países, nomeadamente em Portugal, mas já não em França, onde evoluiu para humour (humor, ironia) e humeur (disposição, ânimo).
O substantivo humor começou por ser usado pelos proto-cientistas da Antiguidade e da Idade Média para designar os quatro fluidos que se acreditava influenciarem «o corpo e o temperamento». Eram eles a bílis ou cólera, o sangue, a fleuma e a melancolia. Actualmente, os cientistas sabem que há outros humores em circulação no corpo humano e conseguiram estabelecer a relação entre eles e o humor de que aqui se fala, e que justifica a transmutação do sentido original da palavra.
Porque está comprovado cientificamente que o sentido de humor tem numerosos benefícios para a saúde física e mental dos humanos: «Quando rimos, há uma reacção química no nosso cérebro que proporciona uma sensação de bem-estar, clareza de ideias e uma atenuação da dor», explicam os médicos. O humor também reduz o stress e provou-se que dez minutos de gargalhadas têm sobre o nosso corpo o efeito de cem voltas numa máquina de exercícios de ginásio. Os cientistas afirmam ainda que algumas células do sistema imunitário são activadas com o riso, que também ajuda à sua reprodução mais rápida .
Não é, certamente, por acaso que, nos dicionários, o conceito científico de humor surge em primeiro lugar, como sinónimo de «qualquer fluido contido num corpo organizado» ou «nome vulgar dos abcessos frios», como informa o Dicionário de Morais. Só em segunda acepção aparece associado à «disposição de espírito, estado de alma» ou à «graça». E do mesmo modo humorista começa por ser o «médico que atribui aos humores os principais fenómenos da vida», e só depois é a «pessoa que, falando ou escrevendo, cultiva o género humorístico», o qual, por sua vez, é aquele «em que entra o humor, o espírito, a graça».
Procurando fora de portas, é talvez entre os anglófonos que se descobrem as melhores tentativas de definição dos humores não fisiológicos – o que não é de espantar, se tivermos em conta o estatuto de distinção de que goza o humor britânico. De acordo com o Macmillan Dictionary, humor é «a qualidade de alguma coisa que a torna divertida ou engraçada, comicidade, capacidade de perceber, apreciar ou exprimir aquilo que é divertido ou tem graça», bem como todo o «discurso, texto ou acção divertida e com graça».
Com estas balizas como pontos de partida, podemos então tentar perceber como se desenvolve e para que serve o humor – e particularmente sob o humor cantado que serve de mote a este escrito.
Convenhamos, porém, que nem as explicações de Macmillan, nem a definição de Morais, revista e certamente actualizada por ilustres linguistas como Augusto Moreno, Cardoso Júnior ou José Pedro Machado, chega para desatar o imbróglio: de que falamos quando falamos de humor?
A verdade é que o humor tem regras que, não sendo necessariamente enumeráveis sob a forma de lei, são essenciais para a sua eficácia. Conhecido praticante e estudioso do humor, Rui Zink explica que «o discurso humorístico assenta numa regra basilar: todo ele é segundo sentido, conotação. É um discurso dúplice logo à partida.
Daí que muitos textos humorísticos percam sentido passado o seu tempo ou a sua época, já que a chave lhes é dada pelo contexto.» Isto implica que, como acrescenta Zink citando Todorov, «o dito do espírito (...) necessita de um terceiro a quem possa participar o seu êxito», algo que já havia sido assinalado por Freud ao constatar que «no gracejo, o cúmplice tem capacidade para decidir se a elaboração do espírito atingiu o seu fim, como se o eu não estivesse seguro do seu próprio juízo de valor.»
A prática do humor, em muitos casos e por muita gente ainda encarada como um mero complemento lúdico da vida, tem sido, no entanto, um factor essencial para a sobrevivência da espécie. O humor é talvez mesmo o principal traço de identidade da raça humana, que se distingue das outras justamente pelo sentido de humor: o homem é o único animal que ri. E o humorista é o único que ri de si próprio, já que «a distanciação em relação ao discurso sobre o outro implica que haja também uma distanciação do locutor em relação a si mesmo, que ele próprio se torne outro para si mesmo. O que equivale a dizer que se torne, ele próprio, objecto de humor.»
Assim, é legítimo desconfiar sempre de quem nasceu desprovido deste factor genético essencial: porque quem não é capaz de rir, tem fortes possibilidades de não ser boa pessoa. E também porque o humor é indissociável da inteligência, tanto por parte de quem o produz como de quem o consome, sobretudo no caso da sátira, onde o recurso à duplicidade de sentidos é uma constante e não resiste a uma leitura denotativa. A arte do humorista está justamente em, a partir da realidade existente, criar uma outra, mais ou menos delirante, mais ou menos sarcástica, mais ou menos crítica, mais ou menos piadética e onde se diz, com frequência, o contrário daquilo que se quer dizer. Isto é válido para as anedotas, para os livros e para as canções.
A escrita humorística é, a par da poesia, a que maior quantidade de efeitos estilísticos comporta. Tendo, por regra, a ironia como ponto de partida, o uso de recursos como o paradoxo, o eufemismo, a hipérbole ou a perífrase, raramente podem ser considerados excessivos (e muitas vezes são mesmo indispensáveis) num texto de humor, onde podem surgir misturados com alegorias, metáforas e metonímias.
Em Portugal, os primeiros registos humorísticos encontram-se nas cantigas de escárnio e mal dizer da Idade Média e nos textos de Gil Vicente. Tinham uma função eminentemente de crítica social e de costumes. E já então, como hoje, a prática do humor servia, essencialmente, para desconstruir e, não raras vezes, para subverter a realidade. A tal realidade que «é aquilo que existe, o que nós supomos que existe e o que nós inventamos», como afirmou José Afonso – que nunca pretendeu ser um humorista, mas foi sempre um homem com grande sentido de humor.
Por assim ser, o humorista, à semelhança de outro artista qualquer, tem de ter a sagacidade necessária para descobrir o que se esconde por trás do que lhe é dado ver. E precisa reconstruir e reinventar a linguagem em que vai exprimir-se, já que seja qual for a sua opção, está sempre obrigado a ter graça. De um modo geral, espera-se do humorista que seja como a criança que grita que «o rei vai nu» – sabendo-se que todos o sabem, mas ninguém se atreve a dizê-lo. E é por isso, regra geral, os humoristas não se dão bem com o poder.
Tolerada como um mal menor nas democracias, a actividade humorística dá-se muito mal com as ditaduras. Os tiranos não gostam de ser objecto do escárnio da populaça, pelo que, invariavelmente, fazem tudo para calar não apenas as vozes dissonantes, mas também as gargalhadas contagiantes. E procuram, através da repressão e da censura, calar os que insistem em não os levar a sério. Tarefa inglória, está claro, uma vez que as anedotas se propagam a uma velocidade que torna inoperante qualquer sistema policial.
Portugal, através da sua história recente, é disso um bom exemplo. Cinco décadas de fascismo conseguiram suprimir quase por completo as publicações humorísticas e fizeram dos praticantes desta arte verdadeiras «aves raras», depois de um período de grande actividade durante a I República. Com o Estado Novo, as anedotas nunca deixaram de circular, mas a sua divulgação passou a ser muitas vezes um acto de heroísmo. E foi assim que um poeta maior como Bocage se transformou no grão-mestre do anedotário lusitano enquanto o país adormecia embalado nas graças consentidas do Pátio das Cantigas e do Pai Tirano - ainda assim o melhor que o regime conseguiu produzir nesta área.
De resto, foram muito poucos os humoristas que conseguiram resistir, e menos ainda os que puderam fazer disso a sua ocupação principal: excepção feita a José Vilhena (o decano dos humoristas portugueses, ainda em actividade), aos Parodiantes de Lisboa e ao Parque Mayer, quase não havia, nos últimos anos da ditadura, quem produzisse humor a tempo inteiro. À excepção de Américo Tomás, é claro, mas esse não fazia de propósito.
A liberdade conquistada em 25 de Abril de 1974, se deu azo a novas manifestações e à expansão do humor, não foi suficiente para que a arte de gracejar passasse a ser levado mais a sério. Além de Vilhena, o resistente, poucos puderam aventurar-se na edição de publicações humorísticas – e as que houve, quase nunca ultrapassaram um ano completo de existência. O Coiso, de Mário-Henrique Leiria, durou uns três meses, O Bisnau, dirigido por Afonso Praça, viveu o tempo de uma gestação, nove meses exactos, e O Inimigo, criado e gerido por Júlio Pinto, permanece como campeão de longevidade: conseguiu chegar às 50 semanas! Perante esta realidade, não custa dar razão a Millôr Fernandes quando este afirma que «o humorista é alguém que trabalha para perder o emprego».
No Teatro, é o que se sabe. Se por um lado a democracia permitiu a afirmação plena de um Mário Viegas, que revolucionou o riso em palco e deu uma nova dimensão ao estatuto do actor cómico – tal como, noutra época e noutro contexto, o fizeram Vasco Santana e António Silva, como fez Raul Solnado e como chegou a pensar-se que faria Herman José –, por outro lado, o Parque Mayer definhou até desaparecer quase por completo: além do Teatro Maria Vitória e de um par de restaurantes, já só sobra o Mário Alberto para dar alguma vida àquilo. E o pior é que não foi só por desleixo do(s) poder(es) que o Parque esmoreceu: a morte do recinto começou quando o teatro-de-revista foi substituído pela telenovela no coração dos lisboetas. Os interesses privados e a especulação imobiliária limitaram-se a fazer o resto.
Deverá daqui deduzir-se que os portugueses não têm sentido de humor? Não me atrevo a tanto, até porque, pelo menos para as aparências imediatas, somos bastante dados ao riso: ninguém nos bate na rapidez com que inventamos anedotas por tudo e por nada, o que pode ser revelador da vontade de exorcizar os fantasmas de uma realidade que, enquanto país, raramente nos habituámos a encarar de frente – mas é também a demonstração de uma inegável capacidade de rir da própria desgraça.
Todos sabemos, aliás, que o problema lusitano não é tanto falta de inteligência, mas sobretudo falta de cultura. Lêem-se em Portugal menos jornais do que na Grécia, e infinitamente menos do que na Escandinávia: o principal diário da Finlândia, o Helsinkin Sanomat, tem uma tiragem de um milhão de exemplares por edição – e a Finlândia tem cinco milhões de habitantes, metade de Portugal. E qualquer jornal regional do Estado Espanhol tem uma tiragem superior à dos maiores jornais nacionais portugueses. A tiragem média do Público para todo o país é semelhante à tiragem do El País para fora de Espanha.
Também não creio que Portugal seja uno e indivisível na capacidade de humorizar a vida. Com a honrosa excepção do Alentejo (onde se produz a maioria das anedotas de alentejanos que por aí circulam), a generalidade do País parece ainda bastante cinzenta e tristonha. Os assustadores índices de iliteracia, as heranças culturais, alguns medos, uma certa falta de atrevimento e de ousadia, contribuem para que, embora amigos de uma boa gargalhada, os portugueses ajam frequentemente como se tivessem vergonha ou receio de a praticar. Sequelas da morte do Império? Pessimismo congénito? Fatalidade nacional? Ou será assim mesmo a natureza humana? Sejam quais forem as razões desta atitude, o certo é que gostamos de rir dos outros, mas temos dificuldade em rir de nós mesmos.
E, depois, há os tabus. Por razões culturais, sociais e políticas, habituámo-nos a olhar alguns temas como intocáveis e impróprios para gracejar: a morte é o principal tema com que «não se deve brincar», logo seguido de Deus e da Igreja. E no entanto são de padres e de freiras muitas das anedotas mais bem conseguidas, tal como são frequentemente os momentos dramáticos que fazem surgir os chistes mais espirituosos. Creio que dificilmente se encontra melhor exemplo do que a «notícia» inserida, em 1992, na primeira página da Ovelha Negra – que, para quem não sabe ou já não se lembra, foi um suplemento satírico do mensário Combate, pioneiro da prática de um humor radical e insubmisso. Não vinha assinada, mas tem a marca inconfundível da ironia descarada de Júlio Pinto, e reza assim:
«Meses após a inauguração, o monumento a Sá Carneiro, na praça lisboeta com o mesmo nome, não tem ainda a água ligada. O projecto original do monumento previa a ligação de água pela Câmara Municipal de Lisboa, de forma a dar sentido à colocação da cabeça de Sá Carneiro, destacada, a meio do conjunto escultórico. A água deveria brotar, em repuxo, da boca do malogrado líder do PPD/PSD, desaparecido em combate há cerca de 11 anos. Observadores contactados pelo “Ovelha Negra” vêem na incúria da Câmara um “claro sinal de boicote político, inadmissível em democracia aberta”. “Nem os mortos respeitam!” – desabafou um dos citados observadores.”»
Perante o que fica escrito, não custa a entender que o suplemento tenha acabado ao fim de seis números. Depois de ter sugerido a transmissão da missa dominical «em episódios diários de dez minutos, após o ‘Remate’ [o programa desportivo da altura, que encerrava as emissões da RTP 1], por se tratar de um espectáculo com claros traços de canibalismo e homossexualidade, já que não se limitam a comer o corpo de Cristo, mas também lhe bebem o sangue», a Ovelha Negra sucumbiu à divulgação da história do «general morto na cama por excesso de generosidade». Não por ser clara e objectivamente antimilitarista, mas porque houve quem achasse que era... uma piada machista!
«As melhores bombas são as bombas de ridículo», disse-me uma vez, numa entrevista, o fundador do extinto PRP (Partido Revolucionário do Proletariado), Carlos Antunes, que, no início dos anos 70 provocou uma onda de hilariedade nacional ao promover a largada de um porco em Lisboa, na Praça do Rossio. Não seria mais do que uma brincadeira comum se o suíno não estivesse fardado de almirante, à imagem e semelhança do então presidente da República, Américo Tomás.
Nessa entrevista, o antigo guerrilheiro urbano defendia a implantação de um terrorismo de novo tipo, mais vocacionado para a comédia do que para a tragédia, e cujo arsenal deverá ser integralmente constituído por aquilo a que o autor moral designava por «bombas de merda» – ideais para os terroristas pobres já que não implicam muita tecnologia:
«Só é preciso acumular os dejectos suficientes e variados, para que se possa garantir a qualidade, e depois fazê-los explodir de forma controlada (pode ser com um daqueles detonadores que se utilizam no cinema, o importante é que a matéria prima não se desintegre), para que tenha o estrondo de uma bomba e tenha o cheiro de uma merda, e que, por mais que se lave, nunca se consiga tirar completamente o cheiro.»
Quanto à matéria prima necessária, acrescenta o dirigente histórico do PRP, «a quantidade varia consoante a área que se pretende atingir». Convenhamos que a história contemporânea seria hoje substancialmente diferente se Bin Laden ou alguém por ele tivesse optado por este método e, em vez das Torres Gémeas, escolhesse a Casa Branca, o Senado ou o Hollywood Boulevard em dia de entrega de Óscares.
In Cantando e Rindo - O Humor na Música Popular Portuguesa
Ed. Câmara Municipal da Amadora, 2002