Seja por mestria, por sorte ou elaborada reflexão, há fotos que guardam em si toda uma história, porque não há arte tão impiedosamente capaz de registar um momento como a fotografia. É o caso da mais conhecida representação gráfica de Adriano Correia de Oliveira, que é também um dos derradeiros retratos que se lhe conhecem e, para mim, recordação de uma das últimas vezes em que nos encontrámos.
Um homem triste, desiludido, profundamente magoado. É assim que Adriano Correia de Oliveira surge nessa foto, feita por Inácio Ludgero numa manhã de Outono de 1981. E foi exactamente assim que o encontrei nesse dia, solicitado para uma conversa de carácter, digamos, profissional.
Ao tempo eu era redactor do semanário Se7e e, também por isso, falávamos com regularidade, embora o nosso convívio viesse de outras vidas e fosse, as mais das vezes, feito à mesa a pretexto de qualquer coisa que raramente tinha a ver com a actividade dele ou com a minha.
Mas nesse dia foi diferente. Não houve comes nem bebes, e o sorriso franco que me habituara a ver-lhe estampado no rosto de menino grande dava lugar a uma expressão carregada de desapontamento capaz de surpreender quem não soubesse da história de pulhices que me veio contar.
Adriano vivia então aqueles que terão sido dos dias mais duros da curta existência que lhe coube: a cooperativa de artistas que idealizara ainda antes da revolução e de que tinha sido o principal impulsionador, tinha decidido afastá-lo, com base numa questão mesquinha e vil.
A cooperativa era a Cantarabril, e reunia uma mão-cheia de cantores – uns melhores, outros piores, quase todos ligados à área político-ideológica que era, orgulhosamente, também a dele – de entre os quais Adriano se destacava, a par de Carlos Paredes, Luís Cília ou Carlos do Carmo, um realce natural pela relevância que qualquer deles tem no panorama artístico português.
Mas, por artes dúbias e invejas fatais, em menos de dois anos a cooperativa passou a ser (mal) gerida por um pequeno grupo de «eleitos» e foi-se irremediavelmente afastando dos propósitos que tinham ditado a sua criação. Palavras de Adriano, nessa época: «a Cantarabril tornou-se um lugar onde reina o mais descarado nepotismo e a mais ampla leviandade cultural».
E foi assim que, a pretexto de um acerto de contas por fazer, Adriano Correia de Oliveira se viu um dia perante uma assembleia geral da cooperativa que, quase unanimemente, acolheu a proposta da direcção para expulsá-lo, pena máxima decidida pelos pequenos bérias de serviço e acatada pelos serventuários.
Excepções registadas, e publicamente assumidas: do presidente da mesa da assembleia, Carlos do Carmo, e do poeta Manuel Branco, as únicas vozes que nesse conselho se manifestaram abertamente contra a decisão; de Paredes e de Cília, ausentes da reunião, mas solidários com Adriano; e poucos mais.
A história é pública, e o seu desfecho também. Adriano passou para a Eranova, onde estavam José Afonso e alguns dos seus amigos de sempre, sem nunca deixar de ser quem era. Foi bem tratado ali, mas a mágoa da vileza sofrida nunca mais sarou. Adriano sucumbiu um ano depois e houve – e há – quem não esquecesse o crime.
O crime, foi isso mesmo que eu disse. Adriano era um cidadão de convicções e espírito militante, mas era sobretudo um homem leal a valores superlativos como a amizade, capaz de distinguir, entre as questões essenciais e os pinchavelhos acessórios, aquilo que deve nortear a nossa vida e o nosso relacionamento com os outros. Era um homem livre e que amava a liberdade, e por isso se manteve fiel às pessoas de quem gostava, mesmo quando não partilhavam globalmente das suas ideias.
Ora esse era um pecado que muitos não lhe perdoavam. Some-se a isto o facto de Adriano ser, muito naturalmente e por mérito próprio, dos artistas mais requisitados da Cantarabril – aliás sempre disponível, até para ir cantar a lugares onde mais ninguém queria ir. Sou testemunha dessa entrega permanente, bem como de várias das intrigas de que foi vítima e da inveja surda de alguns dos seus companheiros desse tempo.
Lembro-me desta história de cada vez que olho para a foto do Adriano. Lá está, inteiro, o homem triste, desiludido e magoado com que me encontrei nesse Outono de há quarenta anos. Sei do que falo, porque vi (a mancha desfocada do lado direito da imagem sou eu), porque era para mim que Adriano olhava nesse momento em que Inácio Ludgero lhe captou a expressão sofrida.
A grandeza (e a mágoa) que há neste retrato ainda hoje me comove. E deveria tirar o sono a quem, ferindo-o como feriu, inevitavelmente lhe apressou o fim. Muitos deles, incluindo quase todos os que decidiram e votaram a ignomínia, continuam vivos e, não por acaso, em boa parte bandeados para causas e lugares bem mais rentáveis. Foram, aliás, como de costume, dos primeiros a trocar de lado assim que o vento leste mudou, quase sempre com proveito.
Quatro décadas se passaram, e é verdade que Adriano continua vivo na memória colectiva do povo de que fez parte e a que tudo deu sem esperar nada em troca. A sua voz clara e livre ainda hoje nos faz vibrar, e quem o conheceu não esquece a massa generosa de que era feito. Mas o crime ficou impune, e até por isso continua a fazer sentido falar dele. Mais que não seja porque, como não há muitos anos afirmava Luís Cília, não foi só um crime contra Adriano, foi um crime contra a humanidade. E esses, é sabido, não prescrevem.
In Adriano - Um canto em forma de Abril.
Ed. Centro Artístico e Cultural Adriano Correia de Oliveira, Porto, 2022