É suposto este ser um texto sério, dado que de seriedade (humana e artística) se trata quando falamos desta dupla imparável. De um lado, Avelino do Carmo, lisboeta de Alcântara desde 1952, pintor de sombras intimistas; do outro lado, Mário Alberto, alentejano nascido no Verão de 1925 na cidade de Lubango, quando Angola ainda era a soit disant colónia portuga e que aprendeu há muito a arte de pegar nas cores e transformá-las como um alquimista.
Os dois são pintores de afectos. "Ambos senhores de uma pintura voluptuosa e libertária, acentuadamente pagânica e, por vezes, de um vibrante e enérgico erotismo" – assim mesmo os descreveu o amigo comum António Macêdo. É esta a parelha que agora nos surge pela frente transformada no Grupo Kowalsky. Ou no Díptico Kowalsky, como prefere Avelino.
Um dueto da corda, enfim. E certamente da corda bamba, já que onde ambos se sentem mesmo bem é a pisar o risco das convenções e da ordem reinante em todo o país, 25 anos depois daquela espécie de revolução que já ninguém lhes/nos tira da alma. E do corpinho, já agora, que tanto o mais novo como o mais velho dos kowalskys sempre gostaram da prática dos diversos prazeres do dito, dando razão à conhecida máxima, atribuída à viúva do Soldado Desconhecido: comer bem e beber tinto dá mais tusa que absinto.
Vamos, então, aos factos, que já ficou dito ser este um texto sério. Díptico ou Grupo, para o caso pouco importa nesta altura. Kowalsky, pintor naif, defensor dos ursos e ex-pastor de renas na Carélia, é o seu padroeiro. Na prática são "dois amigos que querem pintar juntos", como eles dizem. A dupla oficializou-se em 10 de Fevereiro de 2000, na Cordoaria Nacional, numa cerimónia com capitães de Abril, cantores e músicos, escritores e jornalistas, deputados e deportados de esquerda, alguns bêbados anónimos e outra gente de má fama. O acto fez parte de outro, protagonizado também por este vosso modesto relator, que só vem ao caso porque tinha como pretexto o sempre presente Zeca Afonso.
Acrescente-se, já agora, que nada disto aconteceu por inocência. Foi conspiração, vos garanto. Mário e Avelino assumem o carácter político e provocatório, impúdico e libidinoso – quando não mesmo indecente e herético – , daquilo que lhes sai dos pincéis. Mas que se há-de fazer? Eles são jovens e pensam, o que é, como se sabe, uma grande chatice!
Além disso, como dizia o Vítor [Silva Tavares] do César [Monteiro], os kowalskys têm uma grande telha. Uma dessas que eu quero ter quando for mais crescido. E que tem a vantagem de, tal como o sexo, ser saudável e chatear a padralhada, como diz o Mário sobre a verdadeira história, a sua, do Capuchinho Vermelho.
Será por isso que se conjugam tão bem nas suas diferenças? É mais do que provável que sim, caro leitor/espectador/mirone. E, pior ainda, é de recear que já nenhum deles seja tão socialmente recuperável que possa chegar a ministro, deputado europeu, administrador privado de empresas públicas ou vice-versa. Receio mesmo, senhoras e senhores, que nenhum deles não só não tenha vergonha nenhuma daquilo que faz como cheguem ao ponto de se orgulhar das luxúrias e de outras revoluções que ambos gostam de pintar de todos os ângulos possíveis.
E é por assim ser que nada mais pode dizer-se senão que Kowalsky veio para ficar. Mário e Avelino já cá estavam, abrem-lhes a porta e dão-vos as boas vindas. E eu, escrivão de serviço, reconheço e assino. De truz.
Catálogo da exposição Díptico Kowalsky, de Avelino Carmo e Mário Alberto
ACERT, Tondela | 2000