Em primeiro lugar tenho de agradecer ao José António Paradela, por me ter dado a conhecer o Ábio de Lápara, autor do livro que hoje aqui nos reúne. O Zé António conheço eu de há muitos anos, a ele e à sua arte de planejador de casas e de sonhos. O Ábio de Lápara, porém, só conheci há pouco tempo, e muito graças às geringonças internéticas que fazem com que seja possível estarmos todos perto uns dos outros, mesmo quando estamos afastados.
Os três — o Zé António, o Ábio e eu — temos em comum o destino que nos levou para longe da terra onde nascemos. O Zé António foi para Lisboa há mais de 50 anos, eu fiz o mesmo há mais de 30, só o Ábio de Lápara andou por aí, não sei bem por onde, provavelmente a treinar a escrita para as memórias que agora reuniu neste livro. Porque, no fundo, é disto que se trata: "A Rua Suspensa dos Olhos" é um livro de memórias, transformadas em pequenas-grandes histórias, como são sempre, afinal, as coisas realmente importantes das nossas vidas.
Mas não são as memórias do Ábio de Lápara, nem sequer as do José António Paradela, as que se encontram nas cento e muitas páginas deste livro. Eu arriscaria dizer que se trata antes de um punhado de recordações que, sendo de um e de outro, são também de todos quantos, de uma maneira ou de outra, passaram pelos lugares de que aqui se fala.
E há, nestas páginas, muitas coisas que nos são comuns — ao Zé António, a mim, e com certeza a muitos de vocês. E as coisas eram mesmo como estão aqui contadas? Talvez sim, talvez não, mas isso é o que menos importa. A memória, como se sabe, não é tanto a recordação rigorosa dos dias passados, mas é sobretudo a ideia que nos fica deles, e que faz com que o passado continue a ser presente e, de algum modo, se prolongue também no futuro.
Eu não conheci "A Rua Suspensa dos Olhos" tal e qual ela nos é contada neste livro. Nasci uns anitos depois do Zé António, e do Ábio, e por isso já não vi o empedrado nem os poiais em frente das casas de Alqueidão. Mas o lugar onde brincou o Zé António é o mesmo onde, anos depois, eu passei muitos dos meus dias — e sobretudo das minhas noites — da adolescência. Pela simples razão de que era em Alqueidão que moravam alguns dos meus melhores amigos, e isso fazia de mim um passeante regular da rua.
Além disso, Alqueidão desembocava no esteiro da Malhada, que nessa altura era o melhor lugar do mundo — pelo menos para mim e para os meus amigos com quem ia regularmente festejar as estrelas e contemplar a imensidão do Universo. O Bico da Marinha, aonde se chegava por um estreito carreiro de terra batida, era, por incrível que pareça, um sítio mágico a partir do qual era possível viajar no espaço e no tempo, sem sair do mesmo local. E não, não se tratava de nenhum "paraíso artificial". Nessa altura ainda não havia estupefacientes — ou melhor: haver, havia, mas nós não só não os conhecíamos como não precisávamos deles para nada. O céu e a ria e a amizade chegavam para uma grande "trip". E sem efeitos secundários, que era o melhor de tudo.
Depois fui para Lisboa, atrás do sonho de ser jornalista, iludido pela convicção de que, assim, poderia ajudar a mudar o mundo. E o mundo mudou muito desde então, sem dúvida, embora não propriamente graças a mim.
Nessa altura, Lisboa ficava muito longe. Lembro-me de apanhar a camioneta ali na Praça da República, à porta da agência de viagens do Sr. Zé Capote, por volta das 7 e meia da manhã, e chegar ao destino, com sorte, umas cinco horas depois. Imagino que, no tempo em que o Zé António desaguou em Lisboa, a viagem durasse ainda mais. Mas isso não o impediu de manter uma ligação forte e regular a Ílhavo — bastante mais do que eu, diga-se, que me tenho perdido (e encontrado) por uma porção de diferentes lugares do mundo. Afinal, este é capaz de ser mesmo o destino dos ilhavenses, condenados a marinhar, mesmo quando não são marinheiros.
A nossa terra é o lugar onde nascemos, mas é também muitos outros: são os lugares onde vivemos, onde sofremos, onde amamos, onde somos felizes ou infelizes. Por isso, eu, que sou de Ílhavo, sou também de Lisboa, e do Porto, e de Havana, e de todas as cidades onde estive e que me deixaram marcas nos olhos, no corpo e na alma.
O Zé António fez outros percursos, igualmente distantes. E manteve-se em certa medida mais ilhavense do que eu. Mas, no que aos caminhos da memória diz respeito, creio que as nossas histórias, embora diferentes no tempo, estão muito próximas no espaço. E muito daquilo que se passava na Rua Suspensa dos Olhos do Ábio de Lápara, passava-se de modo semelhante na Rua da Capela da minha infância. Além de que — e essa é seguramente outra semelhança que existe entre nós — no meu tempo como no dele, a infância vivia-se muito na rua e a partir da rua. Paradoxalmente, nessa época em que a liberdade era, em Portugal, um anseio longínquo e difícil de concretizar, a vida dos miúdos como nós era muito mais livre do que foi a dos nossos filhos. A rua era o nosso pátio, a nossa casa, o nosso mundo. E a nossa escola, também.
Naqueles tempos em que as crianças vinham da Feira dos Treze pela mão da Dona Alicinha (que "não tinha filhos pois os dava a toda a gente" e que nos ajudou a ambos a vir ao mundo), Ílhavo era muito diferente do que é hoje. Nas nossas infâncias, Ílhavo era uma vila, ainda essencialmente ligada ao mar e à pesca longínqua da Terra Nova, e isso modelou inevitavelmente a nossa forma de estar e de sentir: aquele modo de ser meio agreste que nos caracteriza e que se revela nos jeitos e nos trejeitos, no linguajar, na maneira como falamos uns com os outros — e uns dos outros, também.
Não me custa dar razão a quem nos define como sendo uma gente pouco dada a cortesias: afinal, a "alma ilhavense" moldou-se nos mares do fim do mundo, em meses de solidão e frio glacial, onde pairava sempre o sopro da morte, à espreita em cada vaga. Isto no que aos homens diz respeito. Quanto às mulheres, forçadas a assumir o comando da vida em terra, desenvolveram um forte sentido matriarcal — que se mantém, para o bem e para o mal.
Não é de bom tom fazer auto-citações, mas ainda assim permitam-me que retome, muito brevemente, a ideia central de um texto que escrevi há uns vinte anos, e que, penso, resume aquilo que quero dizer:
«A gente da minha terra foi desde sempre uma gente de partir e de chegar, raramente de estar. A sua relação com o mar, paixão truculenta, é mais forte do que os códigos da razão. Assim, mais do que a lembrança das ruas, das casas, dos lugares e das pessoas, é o oceano aquilo que verdadeiramente nos une. Marinheiros ou não, mas sempre cidadãos das sete partidas, os de Ílhavo habituaram-se a conhecer a incerteza e a viver com ela. Aventureiros por natureza, sonham sempre com o dia do regresso definitivo a terra firme. Mas, mal o conseguem, logo a saudade do mar se faz outra vez sentir. Deve ser por isso que a sua gente (a nossa gente) por vezes parece tão insensível àquilo que tanto lhe diz respeito: os antigos, a história, o património, as tradições, as marcas do nosso passado comum.»
Nem o Zé António Paradela, nem o Ábio de Lápara são homens do mar. Mas o mar está todo neles: por herança familiar, e por condição do lugar de onde vêm. Sina de ilhavense? Muito provavelmente sim. Mas é também por isso que sabe bem passear por esta Rua Suspensa dos Olhos (e agora falo do livro, não de Alqueidão) e revisitar as casas, as pessoas, os lugares que já não existem ou se transformaram irremediavelmente. Percorrer os caminhos da memória, que são frequentemente tão ínvios como os caminhos da vida.
Esta Rua Suspensa dos Olhos é um livro escrito — e bem escrito, o que é cada vez mais raro — com saudade, mas sem saudosismo. Não há, em todo ele, uma única frase que possa remeter-nos para aquela ideia de "ah, no meu tempo é que era bom..." Não. Por bom que fosse, hoje é seguramente melhor, apesar de todos os pesares. José Afonso disse-me, há muitos anos — na primeira entrevista que lhe fiz — que «a realidade é aquilo que existe, o que nós supomos que existe e o que nós inventamos». Pois é. E é também tudo aquilo que vivemos e que não esquecemos, por boas ou por más razões. O Zé António sabe disso, e o Ábio de Lápara também.
E ainda bem que nos ajudam a manter viva a memória do passado, que é a melhor maneira — a única maneira — de construir o futuro. Obrigado a ambos.
Apresentação de A Rua Suspensa dos Olhos, de Ábio de Lápara
Biblioteca Municipal de Ílhavo, 22.11.2015