Era uma vez uma menina nascida num país que já não existe. A história de Nina Govedarica poderia começar assim, mas a sua biografia está bem longe de ser um conto de fadas. Os olhos dela já viram mais do que à generalidade dos humanos costuma ser concedido, e nem tudo o que viu foram coisas belas.
Nascida em Zagreb no início dos anos 70 do século passado, Nina Govedarica licenciou-se em Engenharia, mas seria na pintura que encontraria o caminho e a razão de ser da sua vida. E foi assim que, nos primeiros anos da década de 90, quando a Jugoslávia se desintegrava no meio de uma guerra fratricida para honra e glória de obtusos interesses, Nina se meteu a estudar Belas-Artes.
Alguns anos e muitos milhares de mortos depois, a Jugoslávia idealizada por Tito era apagada do mapa e dava lugar a um conjunto de pequenas repúblicas autónomas. A guerra, marcada por uma brutalidade a que a Europa já não estava habituada, deixou marcas profundas em todos os que a viveram, cicatrizes que hão-de levar muitos anos até desaparecerem por completo.
Na ressaca do conflito, Nina guardou os pincéis e fez-se à estrada, rumo ao lado de cá da Europa. Para trás deixou uma carreira de engenheira que nunca chegou a começar e as dores de um país em sangue. E quando desaguou em Lisboa, em 1998, sentiu que talvez este fosse um bom lugar para recomeçar a viver.
A princípio, era apenas mais uma entre milhares de emigrantes e refugiados da Europa de Leste que, nesses anos cruéis, procuravam em Portugal a paz que as suas terras lhes negavam. Depois, aos poucos, foi atraindo atenções. Para viver, fez muita arte de rua, trabalhos por encomenda, aguarelas para turistas, quadrozinhos simples, mas onde nunca faltava a impressão digital do seu talento.
Fez amigos, conquistou espaços, realizou algumas exposições, ganhou a admiração de muitos que a princípio apenas tinham visto nela uma rapariga franzina e tímida, de sorriso franco pontualmente marcado por alguma tristeza. E quando enfim teve oportunidade de mostrar o lado mais genuíno da sua arte, já não podia haver dúvidas: Nina Govedarica é mesmo um nome para ter em atenção.
Manteve-se em Portugal durante os seis anos seguintes, procurando tirar proveito de um país que, em muitos aspectos, se parece bastante com a sua Croácia natal. Adaptou-se bem ao ritmo dos portugueses, bem menos acelerado do que o dos seus compatriotas. Apaixonou-se, casou, deixou-se envolver pela luminosidade atlântica. Passou por momentos bons e outros que nem tanto, encantou-se e desencantou-se. Mas nunca deixou de pintar, que é aquilo que melhor sabe fazer.
Mas Portugal é aquilo que é, e em 2004 decidiu partir outra vez à descoberta de outros lugares. Desta vez foi até Espanha (acompanhada pelo marido, Fernando Relvas, artista plástico e sonhador como ela) onde viveu durante alguns meses. Depois viajou de novo até à Croácia, onde permaneceu mais meia dúzia de anos. E em 2010 regressou a Portugal, que já tinha escolhido como segunda pátria, para se reencontrar com tudo aquilo que tinha descoberto durante a sua primeira estada entre nós: as pessoas, o vinho, o sol, o clima, o pão, os queijos, o bacalhau.
A mostra que aqui e agora Nina Govedarica nos apresenta é um espelho de todas essas vivências, das experiências partilhadas, dos sonhos inacabados, mas de que ela teima em não desistir. Em Portugal, Nina não se sente uma estrangeira. E se, como diz, as cores do Adriático são significativamente diferentes das cores do Atlântico, isso só contribui para dar outra amplitude à sua visão do mundo.
A pintura de Nina é dominada por tons de castanho, amarelo, vermelho, ocre, em distintas variantes e tonalidades que preenchem a tela em fragmentos minúsculos, como uma imensidão de pequeninos pedaços trazidos do mundo dos sonhos. Mas também ali se encontram os múltiplos azuis dos mares da sua vida, os verdes de todas as esperanças, numa delicada mistura de tons e de sensibilidades a que é impossível ficar alheado.
Estes Contos sobre a floresta, o mar, o homem e os outros são uma oportunidade rara para ficar a conhecer melhor o trabalho desta pintora que já esteve cara a cara com o lado mais obscuro da natureza humana, mas teima em não se deixar vencer por ele. Daqui talvez Nina parta outra vez, um dia (o Oriente é um destino que gostaria de enfrentar), mas até que tal se concretize gozemos o privilégio de a ter por perto.
E se alguém pensa que a arte abstracta não provoca emoções fortes, é porque ainda não viu aquilo que faz Nina Govedarica: aqui coexistem pessoas, gatos, peixes, lugares imaginários, serpentes douradas, o amor e a esperança, os pequenos gestos e as grandes epopeias. Em tons que podem ser suaves ou agrestes, tristes ou animados, e que podem mesmo prestar-se a inúmeras leituras, mas que não deixam nunca indiferentes quem os observa. É isso que distingue um grande artista de um artista vulgar – e a vulgaridade é coisa que, definitivamente, não faz parte dos atributos de Nina Govedarica. Felizmente para ela e para nós.
Apresentação da exposição Contos sobre a floresta, o mar, o homem e os outros, de Nina Govedarica
Centro de Arte Contemporânea da Amadora | 15 de Janeiro a 1 de Março de 2011