E o resto não são cantigas

E o resto não são cantigas

Neste ano em que celebramos o primeiro cinquentenário da Revolução dos Cravos, Associação José Afonso brinda-nos com esta antologia de entrevistas, a primeira e mais completa reunião das mais relevantes declarações públicas do autor da canção-hino que anunciou a nossa Liberdade. E se todos os dias são bons para recordá-lo, a efeméride e os difíceis tempos que vivemos fazem desta uma edição particularmente oportuna.

José Afonso teve uma vida curta, mas de uma intensidade fora do comum. Foi pioneiro de um movimento artístico que revolucionou a música portuguesa e a elevou a um patamar de excelência. Mas foi muito mais do que um artista de convicções. Foi ele próprio um militante da nossa emancipação colectiva, perseguido pela ditadura e por ela obrigado a deixar o Ensino e a dedicar-se profissionalmente à música – no que acaba por ser uma deliciosa ironia da história: perdeu-se um mestre-escola, mas ganhou-se um artista raro que, de outro modo, talvez não tivesse conseguido fazer o que fez como autor e intérprete.

Ao recuperar dos tombos mais de cem entrevistas de José Afonso publicadas em
diferentes jornais e revistas desde o início da sua profissionalização forçada, esta obra contribui decisivamente para um mais vasto conhecimento e uma melhor
compreensão do pensamento e da acção (artística, social e política) do artista e do homem – e, consequentemente, de toda a obra ímpar que nos legou.

Reunir tantas e tão diversas e dispersas prosas foi com certeza uma tarefa árdua, mas indubitavelmente meritória, já que nos permite avaliar com alguma objectividade as diferentes etapas do seu percurso, seja na sua evolução criativa ou política – porque, para lá do indiscutível valor artístico, toda a obra de José Afonso é indissociável das lutas em que se envolveu, dos ideais que abraçou, de tudo aquilo em que acreditou e nos ajudou a acreditar.

O posicionamento político de José Afonso não é uma questão despicienda, sobretudo num tempo como aquele que vivemos, em que a corja volta a fazer-se ouvir impune e desavergonhadamente, em Portugal como no resto da Europa e um pouco por todo o mundo. Não sei se é a história a repetir-se ou o prelúdio de uma nova era, mas seja o que for que o futuro nos reserve, o presente não augura nada de bom. E, também por isso, este é um livro importante e oportuno.

Os seus diferentes testemunhos aqui reunidos – que abrangem um período de vinte anos da nossa história recente, antes e depois de Abril – são também peças importantes para a compreensão do tempo que lhe coube viver. Estão aqui muitas das suas histórias de vida, conceitos éticos e estéticos, tomadas de posição, vivências, desejos e frustrações, alegrias e tristezas. E entender o passado, o que se fez e o que ficou por fazer, é essencial para arquitectar o porvir. Assim, a edição deste livro é também um serviço público. Que, quem sabe?, poderá até ter continuidade, pois haverá certamente ainda outras entrevistas e textos por descobrir e reunir. Nomeadamente as entrevistas para a rádio (e estou a lembrar-me da que lhe fez Adelino Gomes no dia do seu regresso de Moçambique, em 1967, ou de uma outra com António Macedo, para a Rádio Comercial, em finais dos anos 70 ou inícios de 80), ainda que estas sejam mais difíceis de localizar e/ou cujos registos, mais facilmente perecíveis do que os dos jornais, se tenham irremediavelmente perdido.

Mas as 400 páginas que se seguem têm matéria suficiente para um mais amplo e aprofundado conhecimento do nosso maior trovador. Quem alguma vez falou com José Afonso sabe como a actividade artística era, frequentemente, desvalorizada pelo próprio, que dizia encarar a música como ‘’um utensílio’’, não um fim em si própria – mesmo se a enorme exigência que tinha para consigo mesmo, nomeadamente durante a gravação de cada disco, desmentia esta aparente subvalorização das cantigas. Mas a verdade é que, tanto nas entrevistas como no convívio entre amigos, a música só era tema de conversa na exacta medida em que as circunstâncias a tanto obrigavam.

Esta postura é perceptível em muitas das entrevistas aqui reunidas, nas quais frequentemente se esquiva ao tema para falar daquilo que mais seriamente lhe interessava: a vida e o mundo, o que via e o que vivia, os lugares e quem nele habitava – fosse o Zé da Merda das lembranças de Coimbra ou o Ti Zé Pastor com quem partilhava sabedorias na serra da Arrábida. E é nesta dimensão global (e por isso às vezes chocante, às vezes contraditória, como tudo que o que é humano) que entramos através deste livro.

Tudo isto engrandece o artista, mas sobretudo ajuda-nos a conhecer melhor tanto a pessoa que ele era como a personagem pública em que se transformou, e que frequentemente o transcendeu – e se calhar ainda transcende. Aliás, logo numa das primeiras entrevistas incluídas neste livro, datada de 1969, José Afonso é confrontado com a perspectiva de se ter tornado num ‘’mito’’, ideia que obviamente contesta – e explica porquê, como poderão ler algumas páginas mais adiante.

Sem exagero, atrevo-me a dizer que este ‘’Semeador de Palavras’’ é, a partir de agora, uma obra de consulta fundamental para todos os que, agora ou no futuro, queiram abordar com algum rigor as diferentes fases da vida e da obra de José Afonso. Que é, afinal, uma história fantástica feita de muitas histórias comuns e de algumas incomuns. Mas todas elas divinamente humanas.

Prefácio ao livro Semeador de Palavras - Entrevistas a José Afonso - Edição AJA, 2024