Elogio da inocência

Elogio da inocência
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
– Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

Herberto Helder  

1 Naquele tempo éramos todos imortais. Havia mais mundos para lá do mundo que nos era dado conhecer e onde nos era permitido viver. E nós sabíamos. Era o tempo das coisas inevitáveis, como a realidade imaginada, a noite a descobrir, o sonho, a urgência das coisas para viver. E nós vivíamos. E inventávamos sons e momentos, da mesma forma rigorosa e apaixonada com que fazíamos crescer os silêncios até o seu clamor invadir tudo.

Foi nesse tempo e dessa forma que o Geraldo se tornou meu irmão. Ele era imortal, como eu, e os imortais sabem sempre reconhecer os da sua laia. É tudo uma questão de conseguir grocar de modo adequado, como nos ensinou Valentine Michael Smith. E foi assim que descobrimos a quinta dimensão das coisas e dos lugares e das pessoas. E percebemos que havia pessoas e lugares e coisas que valiam a pena.

Naquele tempo acreditávamos uns nos outros, o FMI ainda não tinha aterrado na Portela, a perversão do universo parecia passar ao lado da nossa existência de imortais. Era um tempo embalado por sons decididos e decisivos, feito de imagens e cheio de vontades determinadas. E deste modo atingimos o conhecimento das coisas e das sombras que se escondem por trás da realidade.

Foi assim que nos fizemos homens e aprendemos a acreditar na amizade como o mais forte e duradouro dos sentimentos. E é por isso que este é dos textos mais difíceis de quantos até hoje me foi dado escrever. Porque tudo o que possa dizer-se dos amigos é sempre pouco, mesmo quando é muito. Por isso tentarei ir directo ao essencial: a poesia, finalmente reunida em livro, do meu amigo Geraldo Alves. Saravah!

O passar dos anos fez de mim um homem de muitas incertezas, mas há uma em particular que sempre me assalta nestes casos e que tem a ver com o real valor das palavras enquanto expressão sincera dos afectos. Porque se as palavras podem ser subjectivas (e são-no com frequência, mesmo quando se prescinde de todo dos adjectivos), os afectos têm obrigatoriamente que ser, mais do que objectivos, autênticos – ou, em definitivo, não o serão. E este é, antes de tudo, um livro de afectos.

2 Feitos estes considerandos, vamos então aos factos. Geraldo Alves é, ninguém duvide, um poeta de mérito que muitos se habituaram a reconhecer-lhe sobretudo nas canções que escreveu, quase todas com a parceria musical de outro amigo, Artur Ramisote, que a injustiça divina não permite que esteja aqui connosco, compartindo a festa que obrigatoriamente tem que ser a edição deste livro.

Mas o Geraldo é mais do que um poeta. Ele é o cidadão atento à realidade, o homem empenhado na lenta mas inevitável evolução do mundo. E é, antes de tudo, o amigo e companheiro com quem partilhei muitas partes essenciais dos meus momentos juvenis, e de quem não consigo (nem quero) falar de forma isenta e imparcial.

Descrever aqueles que amamos é tão difícil como explicar os morangos. Por isso não sei dizer-vos, em rigor e por poucas palavras, quem é este Geraldo Alves. Em rigor, também, já não consigo lembrar-me de quando nos conhecemos, porque a verdade é que nos conhecemos desde sempre. Desde os bancos da escola, como soe dizer-se, não será a expressão exacta: fizemos os anos da primária em pontos diferentes (ele andou na escola velha de Espinheiro e eu na nova de Cimo de Vila), mas partilhámos as sessões de catequese que inauguraram o Centro Paroquial de Ílhavo. E a verdade é que se por lá não me encontrei com Deus, essas incursões católicas infanto-juvenis nos marcaram a ambos no encontro uns com os outros.

Cabe aqui revelar aos mais novos e lembrar aos outros que o princípio da adolescência do Geraldo e deste vosso interlocutor passou, durante algum tempo, pelo coro da igreja matriz de São Salvador, onde ambos vivemos alguma curiosa moinice. Acho mesmo que foi ele que me desafiou para o tarantantan, que consistia na participação na missa dominical, um santo sacrifício cujos imprescindíveis ensaios nos davam um pretexto válido para sair à noite antes de plenamente conquistado esse direito perante a instituição familiar. É certo que o repertório não era o mais excitante, mas também não envergonhava por aí além. Além disso, havia as miúdas, claro. Eu explico:

Viviam-se ainda os anos do fascismo bacoco que nos coube, e a moralidade vigente nas escolas impunha a separação entre os dois sexos oficiais. Ora, como o coro era misto, facilmente se depreende que a nossa participação nas actividades canoras da Santa Madre Igreja tinha – há que confessá-lo – um sentido bem menos devoto do que sugeriam os momentos em que abrilhantávamos a eucaristia do bom Padre António. Pelo menos ali, podíamos contactar de perto com o impropriamente chamado sexo oposto, e vice-versa. A verdade é que dessas andanças não terão saído nenhuns amores definitivos, mas aprendemos, todos, alguma coisa de útil. E foi aí, muito provavelmente, que começámos a ser imortais. O Padre António, que agora é Bispo da Guarda, por certo não me desmentirá.

3 Geraldo Alves teve o privilégio de pertencer à geração que viveu por dentro de todos os sonhos. E nem a normalização democrática que acabou por converter o país numa coisa muito diferente e bastante mais feia do que aquela que se imaginou em 1974, o fez perder o agudo sentido de observação que então desenvolveu – de si mesmo, dos outros e do mundo.

Esse é um dos traços mais vincados do seu carácter, e está por inteiro na sua poesia, nas suas canções, no seu discurso, marcado ora pela firmeza, ora pela bonomia, dando conta de interrogações, gritos e medos que são dele e são de todos. Era obrigatório que assim fosse por parte de quem alia uma legítima insatisfação face às limitações do género humano à insaciável curiosidade perante as coisas do Universo que lhe conheço desde sempre.

E é por isso que falar-vos dos versos que se seguem não será, sequer, o mais importante. As palavras do Geraldo valem por si, e o que quer que se diga em jeito de «prefácio» ou «nota prévia» nada poderá acrescentar de válido àquilo que ele escreveu. A poesia não se explica: vive-se e sente-se e come-se e pratica-se. Como os amores e os sonhos e as dores e os encantos. A poesia – sobretudo esta poesia – não é, não pode nunca ser, um vulgar objecto literário.

Era, aliás, da poesia e dos seus sentidos que mais se falava nesses tempos de mistérios e descobertas, noite dentro, entre o Bico da Marinha e o beco de Alqueidão, a meias com os outros imortais de então: o João Balseiro que já nesse tempo era o guardião-mor das nossas memórias futuras, o Néu Branco que nunca revelou a ninguém o segredo dos bifes au serrote inventados colectivamente num serão esfaimado, o Quim Xoto, o Lavanda – para só citar alguns dos mais próximos.

Era poesia, sim, mesmo quando tudo parecia resumir-se a uma boémia ligeira repartida entre o Galera e a tasca do Zé Ladrão, a casa deste e daquele, a ria e o mar onde navegavam os nossos anseios, o céu por onde viajávamos com Bradbury e Asimov, Pink Floyd e Frank Zappa, Moody Blues e Deep Purple. E a poesia de todos eles. Poesia da alma mas também do corpo, como defendia Wilhem Reich, cujas palavras nós devorávamos com a certeza de que Marx e Freud eram muito mais compatíveis do que garantiam, juntos ou à vez, os marxistas e os freudianos da época.

Quem nunca privou de perto com esta rapaziada, dificilmente poderá entender o significado de coisas tão simples como as que preenchiam os nossos dias – e, sobretudo, as nossas noites. Quem nunca foi imortal talvez não perceba que, mesmo sem música, o «Soneto da Separação» de Mestre Vinícius pode ser tão grandioso como a mais bela das sinfonias (perguntem ao Vasquinho se não é verdade) ou que uma limonada em hora de sede pode ser tão embriagante como o mais puro dos néctares.

Porque, ao contrário do que possa pensar-se, a imortalidade não é um dom dos santos ou da alma: é um estado nem sólido nem líquido, que corresponde a uma fase do crescimento e se prolonga por mais ou menos tempo de acordo com a estrutura interior de cada um. No nosso caso, durou o suficiente para nos permitir descobrir algumas das mais fascinantes razões de ser da existência.

As cumplicidades que essa época gerou mantiveram-se intactas ao longo dos anos. Mesmo quando cada um de nós decidiu seguir o seu caminho, mesmo quando esses caminhos nos afastaram do convívio diário que, quase religiosamente, fazíamos questão de cultivar. Mesmo quando a luta pela sobrevivência ocupou o lugar dos nossos sonhos juvenis e a vida real impôs as suas regras implacáveis.

4  Estes são os factos, ou pelo menos a sua essência. E é por isso que ler (ou reler) estes poemas do Geraldo é bastante mais do que um exercício de saudosismo. O tempo que passou vale como memória que tem obrigatoriamente de projectar-se no tempo que está para vir, sob pena de não ser mais do que um conjunto de histórias sem outro préstimo para lá da satisfação masturbativa do ego de quem as viveu. E o tempo destes versos é o nosso tempo. Ontem, como hoje, na esperança de um amanhã que valha a pena.

As palavras de Geraldo Alves reflectem a inquietação do poeta perante a natureza dos homens e das coisas. Esta poesia que se expõe e nos expõe, sem medos vãos nem rodriguinhos supérfluos, reflecte uma opção tão natural como a própria vida. O poeta é aquilo que é, e não está aqui para enganar ninguém: «Nasci / e os gestos da parteira foram maquinais / cresci / absorvi o tudo / e cristalizei-o dentro de mim / com a sofreguidão da primeira aventura. / Fui humano / mas programei-me / com o cérebro magnético e perfurado. / Hoje / caminho entre máquinas maquinalmente / programo um poema / e escrevo-o maquinalmente.» (Automaquinização I)

Para lá da auto-ironia, surgem as angústias – «Ainda sei beijar / e amanhã?» –, mas o poeta não desiste de abraçar o mundo: «Fazei a máquina amor / o mundo irá por onde ela for / e morrerá a suplicar / que baixem as tarifas para amar» (Automaquinização II). Afinal, ele nunca deixou de ter consciência de que «somos catraios crescidos / somos os vossos sentidos / no salto para a outra margem» (Cena de Catraios) e, no fim de tudo, resta sempre um lugar para a esperança: «Venham, venham todos / beber da minha alegria / não tenho ouro nem jóias / mas vivo um sonho em cada dia» (O Vagabundo).

Muita da poesia que está neste livro nasceu para ser cantada, o que não só não a diminui como a acrescenta e engrandece. Geraldo Alves aprendeu a vida a ouvir e a ler os maiores mestres, e entre as inevitáveis influências da sua arte não é difícil descortinar as de José Afonso ou Sérgio Godinho, Chico Buarque ou Jacques Brel, Paul Simon ou Léo Ferré. Podia ter optado por cantiguinhas fáceis, e talvez tivesse tido sucesso na vida artística. Em vez disso, optou pela autenticidade. Pagou por isso o seu preço, mas estou certo de que, pelo menos nesse aspecto, não se arrependeu.

Agora, passados tantos anos e tantos sonhos, estamos todos mais velhos, mais cansados e menos inocentes. Deixámos de ser imortais, substituímos as certezas inabaláveis pelas dúvidas mais ou menos metódicas, mas o importante é que não nos rendemos. Mesmo se o FMI passou a comandar as nossas vidas e os senhores do mundo tudo fazem para alimentar a nossa descrença. Mesmo se a realidade insiste em provar-nos que já não há pessoas nem coisas nem lugares que valham a pena. Porque a verdade é que continua a haver mais mundos para lá do mundo que nos foi dado conhecer e onde nos é permitido viver. E nós sabemos.

Prefácio a Cravos com Espinhos, de Geraldo Alves
Ed. Os Ílhavos, 2003