Que em Portugal se passam coisas estranhas, difíceis de entender por qualquer cidadão de inteligência média, não é novidade para ninguém. Mesmo assim, de vez em quando não consigo deixar de me surpreender com alguns dos insondáveis desígnios com que a Divina Providência ou alguém por ela nos brindou.
Só no curto espaço de um século tivemos, entre outras curiosidades, um milagre de Fátima, um ditador que criava galinhas no quintal, um primeiro ministro que não lia jornais e até um Alberto João para quem a Madeira mais do que um jardim, é uma autêntica coutada.
Talvez pelo hábito da convivência com estas e outras personagens da nossa história recente, os portugueses têm demonstrado uma curiosa capacidade de co-habitação mais do que pacífica com alguns fenómenos da realidade virtual.
Só assim se pode entender a ausência generalizada de indignação perante o conjunto de acções que alguns antigos agentes da PIDE protagonizam ultimamente, com vista à reabilitação da polícia de Salazar.
Tudo começou há um par de anos, com a célebre entrevista do ex-inspector Óscar Cardoso à SIC, onde pouco faltou para que a PIDE fosse transformada num simples grupo de escuteiros.
O mesmo Cardoso voltou recentemente a atacar, desta vez num livro escrito a meias com um antigo preso, onde torturador e torturado se envolvem num taco a taco frequentemente cordial, provando aos mais incrédulos que, em democracia, somos todos iguais aos olhos de Deus e do povo.
Agora foi a vez de Rosa Casaco, o chefe do bando que há 33 anos assassinou Humberto Delgado. A sua versão do crime, publicada na última edição do «Expresso», é um relato a todos os títulos exemplar.
Ao longo do seu depoimento, o pide Casaco assume o papel do polícia enganado, que só tinha ido a Badajoz para comprar caramelos e dar milho aos pombos.
Vejam lá que eles, os pides, nem sequer queriam matar o general: a ideia era só levá-lo a dar uma volta e, de caminho, trazê-lo para Lisboa. Só que tiveram azar e um dos rapazes resolveu (à revelia do chefe, que era Rosa Casaco), tratar do assunto ali mesmo. Chamava-se o assassino Casimiro Monteiro e o próprio Casaco o define como «um facínora» que «matava a torto e a direito. Mas era um patriota exacerbado». Diz o pide.
Foi tudo um equívoco, portanto. Pela leitura das palavras do pide, fica-se mesmo com a sensação de que só lhe faltou pedir desculpas a Humberto Delgado pelo incómodo de o terem assassinado.
Um dia destes, ainda alguém nos vai tentar demonstrar que a PIDE era uma espécie de Santa Casa que nunca prendeu, nem torturou, nem perseguiu ninguém. E se há quem duvide do holocausto, porque razão não poderá um pide comum pôr em causa a história da instituição a que pertenceu?
Cá para mim, do que os pides gostavam mesmo era de ajudar velhinhas a atravessar a rua e salvar gatinhos empoleirados na copa das árvores.
Com um pouco de jeito, e aproveitando o revivalismo em voga neste fim de milénio, ainda há-de aparecer alguém a propôr a reconstituição da PIDE.
É que, pelos vistos, ainda há quem tenha saudades dos "safanões dados a tempo", daquele jeito manso que é só deles e que Rosa Casaco e Óscar Cardoso conhecem como mais ninguém.
TSF | 18.Fev.1998