O presidente do governo regional da Madeira celebrou ontem 20 anos de poder mais ou menos absoluto com diversas entrevistas, concedidas a alguns orgãos de comunicação social do Continente. Com a sagacidade e a subtileza que o caracterizam, Alberto João Jardim aproveitou para disparar em várias direcções: acusou o PS e Mário Soares, o PSD e Cavaco Silva, o poder do Continente e a oposição da ilha que aparentemente lhe pertence.
Pelo caminho, lá foi dizendo que «os governos do professor Cavaco e do PS são iguais na sua orientação económica» e que «este neoliberalismo sem solidariedade e desumano, que gera consumismo e desemprego, ao lado de uma educação medíocre, sem ética e sem valores, vai acabar por gerar conflitos sociais que o neoliberalismo, tanto do PSD como do PS, não está a prever e não está preparado para enfrentar».
Não, não estou enganado. Foi mesmo Alberto João Jardim quem disse isto. E disse mais. Disse, por exemplo, que um dos seus maiores gozos «é ver no poder, em nome da esquerda, os tipos que nos anos 70 falavam contra os Champalimauds, os Espírito Santos e os Mellos e que agora lhes deram todos os sectores estratégicos do Estado».
Durante 20 anos, Alberto João criou nos portugueses mais ou menos lúcidos a imagem de um sujeito arrogante e autoritário. E agora, em escassos minutos, revela-se afinal dono de um discurso esquerdista que Álvaro Cunhal ou Mário Tomé seriam capazes de subscrever sem hesitações.
E o pior de tudo é que Jardim não estava a brincar. E, mais grave ainda, é bem capaz de ter razão e de estar, como garante, «à esquerda do actual Governo».
Convenhamos que não é assim tão difícil. Ontem mesmo, foi noticiado pela generalidade da Imprensa que o PS voltou a ceder perante o PSD na já estafada questão do aborto. E, apesar de a respectiva lei ter sido aprovada no parlamento, os socialistas concordaram em baixar de 16 para 12 semanas o prazo legal para o aborto terapêutico.
As submissões do governo de Guterres perante a oposição social democrata tornaram-se já de tal modo frequentes que, um dia destes, arriscam-se mesmo a deixar de ser notícia. Foi assim com o referendo pelo aborto, do mesmo modo que já anteriormente havia acontecido com a revisão constitucional. Dialogante até à exaustão, o primeiro ministro parece cada vez mais empenhado em não contrariar o PSD do que em satisfazer os anseios de todos quantos o elegeram acreditando que assim conseguiriam acabar de vez com a política cavaquista.
Por tudo isto, parece-me justo que o PS e o PSD se entendam para criar o tal estatuto de «líder da oposição» que, segundo notícias vindas a público na semana passada, iria permitir a Marcelo Rebelo de Sousa auferir de um vencimento semelhante ao do primeiro-ministro. Penso mesmo que, por uma questão de bom senso, Marcelo deveria ganhar mais do que Guterres. Afinal, o líder do PSD já conseguiu provar que, com o PS no governo, não é preciso ser ministro para mandar no país.
TSF - Crónicas de Escárnio e Maldizer - 18.Março.1998