O Papa foi ver um espectáculo de Bob Dylan. Poucos anos atrás, uma notícia deste tipo seria, no mínimo, uma brincadeira de gosto duvidoso. Na melhor das hipóteses (isto é, se a notícia fosse verdadeira) seria motivo de manchete em quase todos os jornais do planeta.
O Papa? Num espectáculo de Bob Dylan?
Eu sei que o mundo está a mudar e que as verdades absolutas de ontem deixaram de o ser às primeiras horas da manhã de hoje. Eu sei que a Rússia já se converteu e que o big show do julgamento final não deve tardar a aparecer por aí, certamente patrocinado por um banco ou uma seguradora. Eu sei, enfim, que a realidade, tal como a tradição, já não é o que era.
Mas, ainda assim, não deixo de sentir um estremecimento ao ver Sua Santidade ouvindo «Knockin' On Heaven's Door» como se escutasse «Queremos Deus Homens Ingratos» ou o clássico «Miraculosa, Rainha dos Céus». Está certo que o Papa é polaco e Bob Dylan nasceu nos Estados Unidos, mas isso não justifica tudo.
Não quero insinuar que Karol Woytila esteja a perder as capacidades e a firmeza que lhe conhecíamos e se deixe comover por uma vozinha desafinada que lhe pergunta «how many times must a man turn his face pretending he just does'nt see». Mas reconheço que é difícil entender a razão que levou o Papa a estrear-se no rock com Bob Dylan. Logo com Bob Dylan. Seria lógico que o Sumo Pontífice desejasse ouvir Roberto Carlos cantar «Jesus Cristo Eu Estou Aqui» e ninguém se incomodaria se os serviços do Vaticano telefonassem para o Coliseu a reservar bilhetes para o próximo espectáculo de Frei Hermano da Câmara.
Agora, Bob Dylan? O mesmo a quem os serviços secretos norte-americanos ainda há pouco mais de 20 anos chamavam comunista? O mesmo que reivindicava para si o estatuto de anarco-sindicalista enquanto cantava as canções que mais incomodavam todos os poderes - incluindo, naturalmente, o poder da Igreja?
A explicação é simples. Dos pecados da juventude, já Bob Dylan se redimiu há uma boa dúzia de anos, quando gravou o disco da sua conversão ao catolicismio. Chamava-se «Saved» e, se não garantiu a Dylan um lugar no céu, foi pelos vistos suficiente para proporcionar ao Papa um lugar de honra na plateia.
A verdade é que, juntos e ao vivo, Dylan e Woityla estão apenas a dar um cristianíssimo exemplo de reconciliação. Um exemplo que foi já seguido pelo português Carlos Antunes que, segundo foi noticiado esta semana, trocou definitivamente a guerrilha urbana pelo fato e gravata e é hoje um dos sócios da empresa de construção civil Euro-Amer, ao lado de Artur Albarran e do ex-director da CIA Frank Carlucci.
A isto, segundo a moderna linguagem, não se chama incoerência, mas sim evolução. Um dia destes, não há-de faltar muito, ainda hei-de ver Zita Seabra ir a Fátima a pé.
TSF | 1.Out.1997