Batem leve, levemente

Batem leve, levemente

«A tortura e os maus tratos continuam a ser práticas correntes em Portugal». A acusação foi feita pela Amnistia Internacional e divulgada na edição de ontem de diversos jornais. Segundo aquela organização, o Portugal de todos nós emparelha assim com o Perú de Fujimori, o Brasil de Henrique Cardoso, o Paraguai de Wasmosy ou a Argentina de Menem – países onde, segundo o citado relatório, continuam a verificar-se «espancamentos nas esquadras, incidentes de semi-asfixia de detidos, aplicação de descargas eléctricas e outras formas de tortura». Isto, claro está, para já não falar das execuções extra-judiciais e dos «desaparecimentos» que continuam a acontecer com regularidade no Brasil, na Colômbia ou no México.

Estamos, portanto, muito bem acompanhados. Até porque, a Amnistia Internacional inclui também a vizinha Espanha de Aznar no rol dos praticantes mais ou menos regulares de práticas policiais pouco condizentes com os direitos humanos tão constante e insistentemente proclamados pelos governantes ocidentais.

Leio tudo isto no Jornal de Notícias de ontem e quase já não me espanto. Afinal, 23 anos depois de derrubado o fascismo e instalada a democracia, o meu país nunca deixou de fazer parte da lista negra dos lugares onde cães-polícias e polícias-cães se confundem frequentemente. Deve ser em memória dos «safanões dados a tempo» com que o professor Salazar se distraía quando não tinha ninguém para lhe contar o «Música no Coração».

Noutro jornal, o madrileno ABC, descubro uma notícia bem mais curiosa: em Camigliano, uma pequena aldeia italiana, alguém se andou a divertir nos últimos oito meses, intoxicando vários conterrâneos com doses excessivas de um soporífero capaz de provocar crises de letargia que chegam a atingir períodos de 24 horas.

A doença, designada cientificamente como «estupor idiopático recorrente», não apenas mergulha as suas vítimas num sono profundo, como as faz perder a noção do tempo e a memória dos acontecimentos recentes.

É então que se faz luz no meu espírito e entendo, finalmente, a razão de ser da indiferença generalizada perante denúncias como a da Amnistia Internacional. Agora percebo, de forma radical e definitiva, o silêncio dos inocentes Alberto Costa e António Guterres perante uma acusação como esta. Um silêncio irritantemente semelhante ao que Dias Loureiro e Cavaco Silva manifestaram quando, noutras ocasiões, a mesma Amnistia Internacional denunciou as mesmas «torturas e maus tratos».

Não, não se trata de cumplicidade para com os polícias que batem leve, levemente. E muito menos se pode deduzir daqui que os nossos governantes, de hoje e de ontem, tenham qualquer simpatia pelos métodos pré-históricos de combate à marginalidade.

Por mim, estou convencido de que tudo não passa de efeitos secundários do dito «estupor idiopático» que, vá lá saber-se por que razão, ultrapassou as fronteiras de Itália e chegou até nós, deixando os portugueses e as portuguesas num estado de sono profundo que nada nem ninguém consegue interromper.

TSF - Crónicas de Escárnio e Maldizer - 12.Novembro.1997