Independentemente do resultado do referendo de domingo sobre a despenalização do aborto, não restam dúvidas de que este acto eleitoral vai transformar de vez a vidinha da classe política portuguesa.
Ao aceitar submeter a referendo uma lei aprovada num parlamento legitimado por sufrágio, os deputados do PS e do PSD demonstraram uma vez mais a seriedade que os anima na sua peregrinação pelos longos e tortuosos caminhos do poder.
Alguns analistas garantem que, desta forma, os ilustres representantes dos portugueses protagonizaram o primeiro grande atentado contra a democracia representativa desde o 25 de Abril.
No entanto, é bem provável que, desta forma, Governo e oposição laranja tenham dado mais um passo rumo à democracia avançada que se espera para o terceiro milénio. Passo a explicar.
É verdade que a Assembleia da República e os governos todos, desde Soares a Cavaco e Guterres, nunca se preocuparam em referendar a adesão à CEE, a moeda única ou a presença de Portugal na NATO. Mas essas eram «grandes questões nacionais» e, como tal, deviam ser tratadas preferencialmente no estrangeiro.
E, já agora, longe dos olhos do povo, que é incapaz de entender o esforço, a dedicação e o empenho daqueles milhares de funcionários de Estrasburgo e Bruxelas que desinteressadamente escrevem as normas, as leis e os tratados sem os quais não seríamos europeus mas talvez asiáticos ou cangurus australianos.
A despenalização do aborto, pelo contrário, resume-se a dizer sim ou não ao policiamento íntimo – e toda a gente sabe que o povo gosta de histórias policiais. Com a sagacidade que o caracteriza, o professor Marcelo tentou fazer desta um «serial killer» e lançou o isco do referendo, que Guterres, de boca sempre aberta ao diálogo, se apressou a morder.
O governo inaugurou, assim, a era da «democracia lights», pouco empenhada em princípios, mas sempre muito atenta aos fins em vista. Depois da «democracia orgânica» de Salazar e da «democracia musculada» de Cavaco, não ficava bem a Guterres perder a oportunidade de deixar a sua marca na governação.
Ao querer legitimar uma lei legítima, o Primeiro Ministro provou que este governo é tão democrata que até consegue governar contra si mesmo. Vamos lá a ver é se, com tanto diálogo, Guterres não acaba a falar sozinho.
TSF - Crónicas de Escárnio e Maldizer - 24.Junho.1998