O meu estilo é não ter um estilo

O meu estilo é não ter um estilo
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Aos 26 anos, Samuel Mira, aliás Sam The Kid, é um dos nomes de primeiro plano da cena hip-hop nacional. Nascido e criado no bairro de Chelas, em Lisboa, foi ali que despertou para esta expressão cultural que tem nas ruas o seu palco principal. Com três discos no currículo e um quarto prestes a ser concluído, o miúdo que confessa fazer canções para comunicar consigo mesmo no futuro já não tem dúvidas: a música vai sempre fazer parte da sua vida.

Autores - Como é que o Samuel Mira se transforma em Sam The Kid?

Sam The Kid –Eu andava na escola e o meu interesse pelo rap e pelo hip-hop começou através de uma amigo meu, que me mostrou uma cassete de viodeoclips. E aquelas imagens tocaram-me, apesar de eu ser uma pessoa que não liga muito à imagem. A verdadeira explicação, não sei. Mas a verdade é que, desde criança, as composições que me mandavam fazer na escola eu fazia-as sempre em verso, sempre tive uma queda para as rimas. E, pronto, achei o rap uma coisa bastante acessível, porque não precisava de saber cantar nem de ter uma grande formação musical, e é a música que tem mais palavras.

A – E é uma arte também muito ligada às ruas…

STK – Sim, o rap nasceu nas ruas, é uma música urbana. Se bem que, hoje em dia, uma pessoa pode ser de uma aldeia do Alentejo e rappar sobre o tema que quiser, com a mesma credibilidade. A televisão por cabo também ajudou a expandir muito o hip-hop, pelo menos cá em Portugal. Ainda me lembro de ir cantar a alguns sítios e de as pessoas nunca terem ouvido hip-hop, os próprios técnicos de som diziam que nunca tinham ouvido uma música com tantas palavras. Agora já não é assim. Eu, antigamente tinha uma noção completamente diferente do que era o rap, um pouco por causa de alguns projectos europeus um bocado «intrujas», em que o produtor é que é o verdadeiro mentor, um pouco com a filosofia das boys bands, em que as pessoas que dão a cara são substituíveis. Mas, pronto, quer seja mau ou seja bom é sempre uma referência para quem gosta, depois vai-se aprofundando. Mesmo nos americanos, aqueles que eram o mainstream eram o MC Hammer, o Vanilla Ice, que eram até maus MCs, eram mais pop do que outra coisa. Hoje em dia, a esse nível temos o Eminem, mas esse até é um exemplo de um bom rapper, gosto muito das batidas dele.

A – Para quem não saiba: o que é que distingue o rap do hip-hop?

STK – É assim: o hip-hop é uma cultura, o rap é uma coisa que se faz dentro do hip-hop e só tem a ver com o MC [master of cerimonies, mestre de cerimónias]. O hip-hop tem quatro vertentes: o MC, a pessoa que rappa; o DJ, que está nos pratos e faz scratch; o B-boy, a pessoa que dança breackdance, que é a única dança do rap – hoje em dia vai-se ao ginásio e já há danças hip-hop, mas isso é mentira; e o graffiti, que é a expressão gráfica do hip-hop. São estas as quatro vertentes institucionalizadas, digamos assim, desta cultura, apesar de eu pensar que até pode haver mais: o produtor, a pessoa que faz batidas, que faz os instrumentais, onde é que se insere? É o DJ? Mas, e se ele não sabe mexer nos pratos? E várias coisas, que se calhar também são importantes, como a roupa – embora não seja essencial – o código, a própria linguagem…

A – O que é que pretendes transmitir com os teus temas?

STK – Sinceramente, eu não penso muito nas pessoas para quem estou a fazer as coisas. Tento sempre equilibrar os meus álbuns: se calhar tenho uma música que só a minha família é que vai compreender, se calhar tenho outra que só o pessoal do hip-hop é que vai entender. Mas também não me vou censurar se há alguém que não vai compreender. Eu faço as músicas, em primeiro lugar, para mim: é para comunicar comigo no futuro. Quando fiz o meu primeiro álbum, que se chama «Entre(tanto)», estava numa fase em que escrevia muito a divagar, de um modo um pouco abstracto. Eu tenho a certeza de que, na altura, sabia o que queria dizer, não estava a rimar por rimar, mas se ouvir aquilo agora há coisas que não sei o que é que estava para ali a dizer! Por isso é que, hoje em dia, falo de uma forma muito mais concreta.

A – A cultura hip-hop, até por razões históricas, tem muito a ver com as comunidades de origem africana. Mas o Sam The Kid é branco…

STK – A minha atracção pelo hip-hop não teve a ver com o facto de ser feito por negros ou por brancos, foi pela música em si. Nunca precisei de ver um branco rappar para me identificar com o rap…

A – E como é que foste aceite pelo resto das pessoas?

STK – A princípio, em Chelas, eu estava um pouco solitário, havia muito pouca gente a fazer rap. Depois comecei a sair, ia ao Johnny Guitar, havia lá umas noites de hip-hop… E nessa altura havia quem me dissesse: «Eh, pá, tu és fixe, mas és branco…» As pessoas achavam estranho, eu na altura era dos poucos brancos a fazer aquilo, havia assim uns comentários. Mas, pronto. Agora, às vezes, ouço outro tipo de comentários, tipo «Ah!, eu gosto é de rap branco», mas acho que isso não faz sentido…

A – Há uma cor no rap?

STK – Não, eu acho que não. O rap é a «united colors of Benetton», é uma junção de culturas. Por exemplo, o breackdance, nos Estados Unidos da América, foi criado pelos latinos. E eu acho que o hip-hop serve mesmo para isso, para juntar. Ao contrário do que muita gente pensa, o hip-hop não começou na intervenção, começou na festa, com o DJ. Depois é que surgiu o MC, que animava a festa.

A – O que é o mais importante no hip-hop: a música, a letra, a postura?

STK – Tem de ser tudo. Para mim, tem de haver um «casamento» entre tudo isso. Nos Estados Unidos há grandes rappers que conseguem fazer uma batida que até nem pode ser muito boa, mas que é capaz de me prender. E o contrário também acontece. Mas o objectivo tem de ser fazer as duas coisas…

A – Apesar de ser uma arte de rua, hoje o hip-hop socorre-se muito da tecnologia, com os samplers, os computadores…

STK – Eu trabalho com samplers, mas nem sequer uso computador. E o sampler é uma máquina, realmente, mas também é um instrumento. E um instrumento que me permite ter ali os instrumentos que eu quiser, e reais. É uma coisa que é auto-suficiente, não é preciso ter uma banda. Se calhar, se houvesse no meu prédio alguém que tocasse um instrumento eu até podia ter uma banda. Mas eu sou da geração das máquinas, e isso dá para ter uma banda em casa, sozinho…

A – Isso, de algum modo, não será também um produto da lógica individualista em que vivemos hoje?

STK – Talvez. Mas – e eu gosto muito de ser contraditório – se calhar, o hip-hop é talvez a música em que nós colaboramos mais uns com os outros. Os Xutos & Pontapés não vão fazer uma música com os Delfins, e eu já fiz música com os rappers todos, praticamente…

A – Não há competição entre vocês?

STK – Pode haver uma competição saudável. Cada pessoa tem o seu campo, faz as suas coisas, mas no geral damo-nos todos bem.

A – O ambiente que te rodeia desde miúdo, no bairro de Chelas, teve a ver com a tua opção por esta música?

STK – Acho que sim, mas não no sentido de eu ir à rua e respirar hip-hop. Não. Se fosse agora, talvez. Mas na altura em que eu comecei não havia nada esse ambiente.

A – Houve alguma influência familiar que te levasse a isto?

STK – Não, não tenho ninguém na família ligada à música. Apenas, e isso já foi muito bom, nunca fui censurado por ter começado a fazer o que faço.

A – Quais são as preocupações sociais e culturais de uma pessoa como o Sam The Kid?

STK – Falo das coisas que me preocupam, de questões do dia a dia. No próximo álbum é a primeira vez que falo de política, de uma forma mais directa: fiz uma música em que falo da minha ignorância e da minha indiferença política. E represento muita gente: não sou recenseado, não voto. Para que é que eu hei-de votar no menos mau?

A – Podes sempre votar em branco…

STK – Para quê? Só por causa dessa coisa histórica, de termos o direito de voto?

A – Não és uma pessoa muito ligada às questões da política, já percebi…

STK – Não. Se eu fosse oportunista até era fixe, agora na altura das presidenciais… Eu só memorizo as gaffes [dos políticos]. E falo disso no meu disco. Numa música onde tenho o meu avô (que já faleceu) a dizer uma coisa, improvisada, também a apoiar essa «cena». Eu gosto de juntar estas coisas. Também tenho uma intervenção do meu pai, que também é poeta, embora não seja conhecido, ele a falar de Chelas nos anos 70, e depois entro eu a falar dos anos 90…

A – És uma pessoa muito ligada à sua pequena tribo familiar?

STK – Sou. Embora, como é que eu hei-de explicar?, eu transmito mais os meus sentimentos assim, através das coisas que faço. Não sou muito de chegar a casa e ficar ao pé da minha mãe… Às vezes fecho-me no meu quarto e fico ali.

A – Esse novo disco está praticamente feito, não é?

STK – Sim. E chama-se mesmo «Praticamente». E vai sair agora um cd com a banda sonora que eu fiz para «O Crime do Padre Amaro». Eu gosto muito de cinema, é a minha outra paixão. E foi um prazer.

A – O método de criação dos temas do hip-hop acaba por resultar numa mistura de várias autorias. Isso não levanta problemas?

STK – Bem, eu até já fui processado…

A – Processado?!

STK – Sim, pelo Vítor Espadinha. Mas ganhei…

A – Como é que foi isso?

STK – Foi assim: eu tenho um álbum de instrumentais onde tenho uma frase do Vítor Espadinha, dita num programa de televisão. Ou seja, não é nenhuma obra, e nem lhe estou a faltar ao respeito. Era uma frase em que ele aparecia a dizer: «Eu, quando era mais novo, havia uma coisa muito bonita que era a sedução». Era só isso. E tem tudo a ver com a imagem que eu tinha dele, era quase uma homenagem que estava a fazer-lhe. E até houve depois um programa onde ele foi e em que lhe disseram que eu tinha feito isso, ele nem estava a par, mas ele disse que até apoiava… Mas, depois, houve um advogado que se calhar pensou que podia fazer dinheiro com a coisa, e o convenceu a ir para tribunal. Eu, a princípio, ainda pensei dizer que era um amigo meu a imitá-lo, mas depois decidi assumir a verdade. Levei a cassete do programa e disse o que tinha feito, que aquilo não era uma obra, era só uma frase, uma banalidade. Eles andaram ali um bocado à toa, era a primeira vez que havia um caso daqueles, mas acabei por ganhar…

A – O hip-hop, pela sua própria natureza, acaba por incorporar vários sons. No fundo, é uma arte que se aproveita, digamos assim, de outras artes…

STK – Exactamente. Qualquer estilo de música pode fazer parte do hip-hop. Pode pôr-se música chinesa no hip-hop que continua a ser hip-hop. Por isso é que eu fui um dos primeiros a pôr música portuguesa no hip-hop, e há muitas pessoas que dizem que gostam de coisas minhas porque acham que têm uma identidade. E até há quem ache que eu devia continuar por aí, mas isso é uma questão de química. E eu não quero que se diga que eu sou o gajo do «hip-hop-fado». O meu estilo é não ter um estilo, o hip-hop não é uma coisa com regras. É mais a atitude do que a música em si. Eu compro muitos discos, em vinil, para o meu trabalho. Mas às vezes, acabo por descobrir músicas e por gostar delas só pelo que são.

A – O teu futuro vai ser a música?

STK – Sim, com certeza. O meu futuro gostaria que fosse eu ter um estúdio, ter uma editora, e ser independente. Não sei. Mas o meu futuro vai sempre passar pela música.

Ritmo & poesia

Chama-se Samuel Martins Torres Santiago Mira e nasceu em Lisboa a 17 de Julho de 1979. Cresceu no bairro de Chelas, onde, tinha ele 14 anos, um amigo deu-lhe a conhecer alguns vídeos gravados nas emissões do «Yo MTV Raps». Rapidamente se sentiu identificado com a sonoridade e a atitude do hip-hop e, em pouco tempo, torna-se um MC (mestre de cerimónias) conhecido entre os praticantes portugueses da modalidade.

Com três outros MCs seus amigos funda os Official Nasty. Tinha então 17 anos. Gravaram uma maquete caseira e enviaram-na para o programa «Repto», de José Martinho. Foi o primeiro passo, que lhes abriu as portas para o espectáculo de estreia, no Liceu D. Dinis, em Chelas, ainda em 1996.

Os Official Nasty dissolvem-se pouco tempo depois, mas para Samuel a opção estava tomada: a música era o seu caminho. E é como Sam The Kid que começa a apresentar-se, a partir de então, em numerosos palcos, ao mesmo tempo que vai produzindo e divulgando uma série de gravações caseiras.

O primeiro disco «a sério» surge em 1999. Chamava-se «Entre(tanto)» e era uma edição de autor com capa de Napoleão Mira, pai de Samuel, e participações de outros rappers (Xeg, Sanrise, NBC e Shaheen). É ainda uma produção quase artesanal: Sam faz as cópias em casa e vende-as na discoteca Godzilla.

Três anos depois surge «Sobre(tudo)», a primeira edição comercial de Sam, uma vez mais gravada no seu estúdio caseiro. É já um disco mais amadurecido, com uma sonoridade que traz à memória os anos 70, onde participam DJ Cruzfader, GQ, NBC, Beto, Filhos de Um Deus Menor, Regula e Deotorres. O público reage bem e Sam The Kid sente-se motivado para a publicação de um novo trabalho, um CD instrumental a que chamou «Beats Vol. 1 – Amor».

O próximo trabalho está na forja e deverá sair dentro de alguns meses. Deverá chamar-se «Praticamente» - ou «Pratica(mente)», se Sam optar pela lógica dos dois primeiros CDs – e, à semelhança dos anteriores, revela muito das preocupações e estados de alma do rapper. Pelo caminho ficou um curso de produção de vídeo, alguns vídeoclips e várias participações, como produtor e como MC, em vários outros discos.

Em processo de amadurecimento, Samuel sabe hoje, mais do que nunca, aquilo que quer: ritmo & poesia, que afinal são a essência, o significado e a razão de ser do rap.

Revista Autores - Out./Dez. 2005