A guitarra e outros prazeres

A guitarra e outros prazeres

O fado e a guitarra acompanham-no desde que nasceu, vai para 69 anos, na aldeia alentejana de São Francisco da Serra, entre Grândola e Santiago do Cacém. Durante mais de tês décadas foi o acompanhante, discreto mas eficaz, de muitos dos melhores intérpretes portugueses.Depois deixou de acompanhar os cantores e passou a fazer-se acompanhar por eles, dando todo o protagonismo à guitarra que se tornou na razão de ser da sua vida. Chama-se António Chainho e é um dos grandes responsáveis pelo impulso que o ensino da guitarra portuguesa tem conhecido na última dúzia de anos.

Conversar com Mestre António Chainho não é difícil. A conversa solta-se naturalmente, que ele é homem de boa memória e ideias claras, tanto sobre o passado como sobre o presente e o futuro. Começamos pelo princípio, como não podia deixar de ser:
«Nasci a ouvir o fado», diz. «O meu pai tocava guitarra portuguesa, tinha uns dedos maravilhosos. Se tivesse vivido em Lisboa teria sido um grande guitarrista. E a minha mãe cantava o fado, embora nunca tenha cantado em público. Lembro-me de que a primeira coisa que o meu pai me ensinou foi o fado corrido, tinha eu pr’aí uns seis anos.»

A primeira guitarra teve-a António Chainho por volta dos dez, onze anos. Estamos em finais da década de 40, Amália é já uma fadista muito popular, graças em boa parte aos temas de Frederico Valério. As músicas ouve-as António na rádio e as letras aprende-as nos folhetos que a mãe compra nas feiras para depois cantarolar nas sessões de costura:

«A certa altura eu comecei a acompanhá-la. E o meu pai, espantado por me ouvir tocar todas aquelas músicas, perguntava “Como é que tu fazes isso?”, mas eu não sabia responder. Porque a verdade é que eu não sabia sequer o nome dos tons, não lhe sabia explicar. Tinha um muito bom ouvido, era só isso.»
Era só isso. Isso e um grande talento que começava a fazer-se notar, e que haveria de dar azo, alguns anos depois, a muitas apostas no café da aldeia, durante os serões de fado transmitidos pela Emissora Nacional e pelo Rádio Clube, que juntavam uma pequena multidão em volta da telefonia enquanto o pequeno António ia adivinhando o nome dos guitarristas antes de o locutor os anunciar.

Um livro de acordes comprado em Santiago do Cacém foi o único auxílio que o jovem teve na sua aprendizagem da guitarra. Eram tempos difíceis, e ainda hoje Mestre António se lembra de ouvir o pai falar dos «sustos da Pide», frequentes por todo o Alentejo. E porque esses eram dias obscuros, António ficou-se pela quarta classe.

Depois da tropa feita, rumou a Lisboa. Nesse tempo, o circuito dos guitarristas passava essencialmente pelas casas de fado, e foi aí também que Chainho começou. O restaurante “A Severa” foi o lugar onde tocou pela primeira vez profissionalmente, e pouco tempo depois era convidado por Jorge Fontes para integrar o seu conjunto de guitarras. Um programa de televisão onde o grupo participava fez com que António Chainho começasse rapidamente a ser um nome e uma cara conhecida nos circuitos do fado, e assim surgiram também as primeiras invejas:

«Uma noite fui à “Severa” porque estava lá um guitarrista que eu admirava muito e que queria cumprimentar», conta. «Pois o sujeito não me falou e esteve todo o tempo a tocar de costas para mim, que era para eu não poder ver como é que ele tocava. De outra vez foi no “Lisboa à Noite”, com outro guitarrista que eu também admirava e que também não quis cumprimentar-me. Fiquei muito traumatizado com estas histórias, cheguei mesmo a pensar ir-me embora, voltar para a minha terra. Não me adaptava à falsidade de certas coisas neste meio.»

Terá nascido aí o sentimento que, muitos anos mais tarde, há-de levá-lo a querer transmitir aos outros, de forma quase obsessiva, o seu conhecimento da guitarra portuguesa: «Nessa altura ninguém ensinava nada a ninguém, tudo se fechava. Os guitarristas viviam só das casas de fado e iam duma para outra por dez ou vinte escudos, a competição era grande, e eles não queriam que mais ninguém aprendesse e lhes pudesse fazer frente.»

Mas nem isso impediu que António Chainho se tornasse acompanhante de alguns dos mais consagrados artistas portugueses: de Maria Teresa de Noronha a Carlos do Carmo, passando por Francisco José, Tony de Matos, António Mourão, Hermano da Câmara, Lucília do Carmo ou Hermínia Silva, praticamente não houve intérprete do fado que não tenha sido servido pela guitarra de António Chainho.

Passou também por várias casas de fado até que, em 1974, com o fadista Rodrigo abriu um restaurante em Cascais. Foi o primeiro guitarrista a ser co-proprietário de uma casa de fados. Nessa altura já António Chainho liderava o seu próprio conjunto de guitarras. «Tinha uma vida muito ocupada, mas volta e meia apareciam pessoas que queriam aprender a tocar. E eu ensinava.»

Durante todo esse tempo, e nos anos que se seguiram, Mestre Chainho continuou sempre a acompanhar vários intérpretes, do fado e fora dele: quando gravou «Fura Fura» e precisou de um guitarrista para um fado bem pouco ortodoxo, José Afonso foi buscá-lo. Mas a actividade de António Chainho não se limitava ao apoio instrumental de cantores. E foi assim que, em 1983, participou num dos mais emblemáticos discos instrumentais portugueses, «Fado Bailado», que se tornou um campeão de vendas e projectou Rão Kyao muito para além das fronteiras do jazz que eram até então o seu reduto.

Por essa altura já António Chainho se mostrava um homem preocupado com o futuro da «sua» guitarra. E disso mesmo deu conta em meados da década de 80, numa entrevista onde dizia que, daí a vinte anos, a guitarra portuguesa poderia desaparecer. As declarações chamaram a atenção do então presidente da Câmara de Lisboa, Nuno Abecassis, e levaram-no a convidar Mestre Chainho para almoçar:

«Falámos disso, e eu expliquei-lhe que mais de 50 por cento dos guitarristas que havia nas casas de fados não sabiam tocar, eram desafinados. Exactamente porque não havia uma escola.»

Algum tempo depois, Chainho era convidado para uma reunião, na Mouraria, onde ficou esboçada a ideia da criação de uma escola da guitarra – que abrangeria não apenas a execução, mas a própria construção do instrumento. Mais tarde, chegou a ser indicado para o efeito o prédio onde terá vivido a mítica Severa, na Rua da Guia.

Com as mudanças entretanto verificadas na estrutura do poder do município de Lisboa, o projecto acabaria por demorar mais do que o inicialmente previsto, mas em 1998, já sob a gestão do Presidente João Soares, seria finalmente inaugurada a Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa (actual Museu do Fado) e com ela a primeira escola de guitarra em Portugal. António Chainho sente-se orgulhoso por ter dado a sua contribuição para a concretização deste projecto.

1998 foi também o ano da edição de «A Guitarra e Outras Mulheres», a sua carta de alforria como intérprete solista (foi o primeiro guitarrista de fado a ter atrevimento para tanto) e que é também um disco onde António Chainho subverte as regras ao convidar seis cantoras para o acompanharem – a voz ao serviço da guitarra, e não o contrário. Porque, para Chainho, o mais importante é manter vivo e divulgar por todos os meios este instrumento que é parte da identidade lusitana – em Portugal como no Japão, onde conta com vários discípulos, ou na Índia, onde conseguiu criar as bases de uma escola da guitarra:

«Começou tudo com um workshop que ali realizei, a convite da Fundação Oriente, e que mobilizou 200 pessoas que queriam aprender alguma coisa da guitarra portuguesa», lembra. «O sucesso foi tal que, quando regressei a Portugal, me ligou o coordenador da Fundação Oriente em Goa, dr. Sérgio Mascarenhas, a dizer que havia uma dúzia de indianos que queriam aprender a tocar guitarra...»

António Chainho regressou a Goa, e seleccionou três candidatos, que vieram para Lisboa, apoiados pela Fundação. E quando regressaram iam preparados para transmitir a outros aquilo que aprenderam. E foi assim que, em Janeiro deste ano se realizou em Goa o I Festival da Guitarra Portuguesa.

Hoje, António Chainho é um homem satisfeito com o resultado do seu trabalho. E tem razões para isso. Além do currículo único que faz dele um dos mais relevantes intérpretes de guitarra da actualidade – e seguramente o mais importante da sua geração – tem o prazer de ter conseguido levar por diante o seu sonho de divulgação da menina dos seus dedos, a guitarra portuguesa.

«Aquilo que hoje me interessa mais é fazer com que a guitarra apareça e se mantenha», diz. «Eu sou um optimista e acredito que, a pouco e pouco, nós vamos conseguir. Porquê? Repare que, em relação ao fado, fora de Portugal estamos na melhor fase de sempre. Há 30 ou 40 anos só a Amália é que cantava no estrangeiro fora dos circuitos da emigração; neste momento já há vários artistas que conseguem fazê-lo. Quando vim para Lisboa havia meia dúzia de bons guitarristas, tudo o resto era de arrepiar; agora, só jovens já teremos uns vinte a tocarem muito bem a guitarra portuguesa. Então não é de ser optimista?»

Percursos de mestre

Alentejano de nascimento e lisboeta do coração, António Chainho conta com mais de 40 anos de carreira como intérprete de guitarra portuguesa, a maior parte dos quais como acompanhante de alguns dos grandes nomes do fado. No entanto, para Mestre Chainho, a guitarra não tem de limitar-se a esse «segundo plano». E por isso desde há muitos anos desenvolveu novas experiências e procurou outros rumos para o instrumento que é a paixão da sua vida.

Com a edição de «A Guitarra e Outras Mulheres», em 1998, António Chainho consagra-se definitivamente como intérprete solista. Já tinha partilhado o palco em condições de igualdade com músicos como o andaluz Paco de Lucia ou o australiano John Williams, e também já tinha gravado alguns discos a solo – alguns de pequeno formato, um longa-duração intitulado «Guitarra Portuguesa», em 1980, e um outro de colaboração com a London Philharmonic Orchestra, em 1996 – mas foi preciso esperar até aos 60 anos para conseguir inverter os papeis e passar de acompanhante a acompanhado.

Em «A Guitarra e Outras Mulheres» Chainho deu a primazia à guitarra e escolheu seis vozes femininas para o acompanharem: Teresa Salgueiro, Elba Ramalho, Nina Miranda, Filipa Pais, Marta Dias e Sofia Varela. Um naipe de luxo a que se juntaram o produtor Andrés Levin, brasileiro radicado nos Estados Unidos com muita música do mundo no currículo, e o engenheiro de som Bruce Swedien, que até já tinha assinado trabalhos em discos como «Thriller», de Michael Jackson, ou «Back on the Block», de Quincy Jones – além de ter colaborado com músicos tão diferentes como Mick Jagger, Muddy Waters, Sarah Vaughn, Paul McCartney, entre muitos outros.

Dois anos depois repete a experiência no CD «Lisboa-Rio», mas agora com vozes de cantores e cantoras do Brasil – Ney Matogrosso, Paulinho Moska, Virgínia Rodrigues, Celso Fonseca, Jussara Silveira, Armandinho e Dominguinhos – e um repertório de temas originais e clássicos da música brasileira.

Imparável, Mestre Chainho é convidado para participar em diversos espectáculos de Adriana Calcanhoto e Maria Bethânia. Tempos depois, o tenor José Carreras chamou-o para partilhar o palco do Pavilhão Atlântico. E em 2003 acontece o inevitável registo ao vivo, no Centro Cultural de Belém, acompanhado pela voz de Marta Dias e com as colaborações de Fernando Alvim, seu parceiro de aventuras musicais desde o início dos anos 90, e de Rão Kyao.

Durante este ano de 2007, António Chainho conta editar um novo disco. E quer continuar a levar a guitarra portuguesa aos quatro cantos do mundo. Serena e diligentemente como só ele sabe fazer.

Revista Autores - Jan/Mar 2007