Trinta anos depois de ter começado, no Trovante, ainda se considera em processo de maturação. Ao longo deste já extenso percurso, cruzou-se em palco e em estúdio com gente tão diversa como Fausto Bordalo Dias ou Davy Spillane, Miguel Nuñez ou Pedro Guerra, Bernardo Sassetti ou Pablo Milanês. Faz questão de olhar para a música de forma despreconceituada, sem abdicar daquilo que entende ser a sua própria forma de estar na arte que escolheu. Ou que o escolheu a ele. Chama-se Luís Represas, e atinge o meio século de vida em Novembro. Mas está aí para as curvas.
Autores – Trinta anos é muito tempo…
Luís Represas – É. Trinta anos dá para se crescer. Ser corredor de fundo é um bocado isso: é ir crescendo, ir caindo, levantando, arriscando, mas fundamentalmente ir fazendo aquilo em que se acredita, assumindo todos os riscos. E constatar que ao longo dos 30 anos tem sido assim, é motivo de uma grande gratidão.
A – Uma carreira de 30 anos com um percurso coerente e em crescendo, como é a tua, não é assim tão vulgar. Como é que conseguiste aguentar-te «à tona» durante todo este tempo?
LR – Eu acho que, por um lado, há os condicionalismos que envolveram o aparecimento: ter começado a tocar em 1976 não é o mesmo que começar em 2006, ou mesmo em 86…
A – Era mais fácil ou mais difícil?
LR – Por um lado era mais difícil, porque gravar um disco era uma coisa institucional: afirmar o trabalho através de um disco era uma coisa que era só para os «artistas». Hoje em dia, gravar um disco é a coisa mais simples do mundo. Naquela altura não havia nada e hoje há tudo. Em termos do «edifício», estava tudo por fazer. E foi isso o que aconteceu ao longo destes anos todos na música portuguesa: todos nós fomos construindo a par e passo – e quando digo todos nós é isso mesmo, toda a gente que está implicada nesta arte, seja na criação, seja na comunicação, seja na técnica. E esse «ir construindo» também dá espaço e dá tempo para fazer as coisas solidamente. Claro que sempre houve os epifenómenos, que eram o que «alimentava» as editoras – que com esse dinheiro podiam investir em novas ideias e em novos talentos. Não era só uma questão mercantil, aquilo fazia sentido. Por outro lado havia uma partilha muito grande, tocávamos muito uns com os outros, justamente porque estava tudo a crescer, estava-se a fazer tudo…
A – Essa partilha perdeu-se um pouco nos últimos tempos, não te parece? Ou pelo menos modificou-se…
LR – Quando o «edifício» começou a estar feito e entrámos na fase da «pintura» ou dos «acabamentos», as pessoas começaram a dividir-se pelos «apartamentos», a decidir com qual ficavam… Embora haja muitos projectos de encontro, e temos vários exemplos disso, são atitudes diferentes em relação a essa altura. Não estou a dizer que é melhor ou que é pior, não estou a fazer juízos de valor. Não sei até que ponto é que o Trovante, se aparecesse hoje com a mesma atitude conseguiria de alguma forma aquilo que conseguiu. As coisas não se repetem, as coisas são próprias do tempo em que são feitas.
A – Não me parece que, hoje, fosse possível ter a atitude que vocês tinham, por exemplo, na época do Chão Nosso. Até por uma questão histórica: vocês são, objectivamente, filhos do 25 de Abril.
LR – Exactamente. E vimos na esteira daquela a que eu chamo a geração de ouro, do Zeca, do Adriano… Embora, de trás, também houvesse um outro elemento na música portuguesa que foi muito interessante em termos de ruptura com aquilo que se fazia na altura, que foi o Quarteto 1111 do José Cid. Mas de facto é aquela geração dos cantautores que mostra que a música pode ser outra coisa.
A – Quando o Trovante apareceu, em 1976, alguma vez pensaste que trinta anos depois ainda ias estar na música?
LR – Não. Nem trinta, nem dois! Não era um projecto de vida. Eu acreditava que ia ser médico, ou fazer outra coisa qualquer. E, depois, se calhar acreditava que podia ser engenheiro de som, provavelmente iria tentar estudar no estrangeiro. Esta entrega à música e ao Trovante, pensávamos que era apenas uma coisa gira, porreira, empenhada, obviamente, mas que não ia ser assim toda a vida. E quando damos por nós em 81, dois discos passados, e estamos em pleno Baile no Bosque, quando damos por nós, pensámos «Bom, está na altura de optar: ou vamos continuar nisto a tempo inteiro, ou vamos fazer outra coisa.» E é nessa altura que olhamos para trás e temos a noção de que era isso que andávamos a fazer há cinco anos. A partir daí era só continuar aquilo que estávamos a fazer.
A – Olhando para o percurso inicial do Trovante creio que houve três momentos fundamentais: o Festival Mundial da Juventude e Estudantes, em Cuba, em 78, o período da colaboração com o Zeca Afonso, o Fausto e o Adriano Correia de Oliveira, e depois o «Se7e ao Vivo», no Campo Pequeno, no início dos anos 80. Concordas comigo?
LR – Foram períodos muito marcantes, de facto. O Festival Mundial da Juventude, em Cuba, foi um bocado o corolário dos festivais internacionais onde nós andávamos – e continuámos a andar, até 81. Foi um momento de grande descoberta, onde de repente damos por nós a contactar e a partilhar palcos com os Inti Illimani, com os Quilapayún, os irmãos Parra, o Sérgio Ortega, e começamos a tomar contacto directo com a música do mundo. Logo a seguir a isso, o trabalho com o Fausto – que para mim, pessoalmente, sempre foi uma referência muito forte na música – com o Adriano, com o Zeca, e mais tarde com o Sérgio Godinho, fez com que nós partilhássemos o palco com todos esses grandes, de quem nós «bebíamos» como esponjas toda a informação que nos chegava…
A – E que também ajudaram a pagar um pouco aquela «marca» que vocês a princípio tinham, de serem quase uma banda oficial do PCP…
LR – Não foi tanto isso que ajudou, acho que foi a nossa própria atitude. Porque o Trovante nunca foi a banda oficial de partido nenhum, e as proximidades que nós tínhamos com o PC eram resultado das nossas opções pessoais, mas sempre com essa atitude de não sermos uma banda oficial desse ou de outro partido. E a verdade veio ao de cima, sem que nós tivéssemos de o afirmar publicamente. A festa do Se7e foi como que uma primeira consagração: nós existíamos já há uma data de tempo e agora estávamos ali a tocar com os grandes, com o Sérgio, com o Paulinho da Viola, com a Joyce. Foi uma afirmação. E a partir daí o caminho continua a ser feito de risco em risco: quando nós arriscamos os primeiros Coliseus, depois arriscamos o Campo Pequeno, porque acreditamos que as coisas podem acontecer. Ou seja, essas três alturas são muito importantes, de facto, na construção do edifício do Trovante e por consequência do edifico musical de cada um. E acho que nenhum de nós saiu incólume disso.
A – O Trovante acabou porquê? Porque tu querias uma carreira a solo, ou apenas porque tinham de acabar?
LR – O Trovante acaba porque há alguns elementos do Trovante que querem fazer outra música, e eles próprios têm consciência de que não cabe no grupo. E em vez de tomarem uma atitude «violenta», de imprimir à música que estavam fazer a «marca» do Trovante, decidiram – e muito bem, numa atitude de grande verticalidade – ir fazer a música que queriam fazer para outro lado. Chegámos à conclusão de que já não fazia sentido, já não era aquilo que queríamos. E então decidimos acabar. Ou seja: não foi o Luís Represas que decidiu acabar com o Trovante, foi o Trovante que se foi embora.
A – Foi difícil, o recomeço?
LR – Depois do Trovante, eu fiquei de certa forma órfão. Imagina estares dezasseis anos a trabalhar para uma equipa, e de repente não percebes bem quem tu és. Quem sou em musicalmente, quem sou eu artisticamente, enquanto intérprete, enquanto autor. O que é que eu sou, de facto, de nome próprio. E aí é que há a vontade de encontrar o «espelho», e isso só podia acontecer com uma isenção grande de quem trabalhasse comigo. E daí eu ter ido procurar músicos que navegassem nas mesmas águas do que eu, que tivessem a mesma atitude perante a música que eu tenho – e perante a vida também, que isso é muito importante – e que soubessem de um modo não agressivo tratar da minha música, que me ajudassem a descobrir a minha própria identidade, nesses primeiros segundos passos. E também era necessário que isso acontecesse num território onde eu me sentisse em casa, onde me sentisse emocionalmente bem.
A – E então foste para Cuba…
LR – Fui para Cuba, trabalhar com o Miguel Nuñez e com os músicos do Pablo Milanés. E ele sempre teve esta noção, desde o princípio: «O Luís é português, tem uma identidade local, não é latino-americano, e embora não conheça nada da música portuguesa, a música que ele faz eu entendo-a e vou tratá-la com o cuidado de que ela necessita, imprimindo à música dele as características culturais minhas que ele permitir.» Isso foi fundamental em termos de ajuda à minha própria descoberta.
A – Quando gravaste o CD Represas, houve quem se surpreendesse por estar talvez à espera de um disco a dar para o «salsero»…
LR – O chamado «disco de turista», não é?
A – Exactamente. E de repente fazes um disco que é teu, tem o teu som, tem algo a ver com o teu percurso anterior…
LR – Como é óbvio, porque a música que eu gostava de fazer também estava aí.
A – … mas que, tendo todos aqueles músicos cubanos, não tem um som cubano. Foi deliberado?
LR – Isso tem a ver com o bom senso e esse tal cuidado com que o Miguel tratou das minhas coisas (e aí revela-se o grande entendimento que existe entre mim e ele, é aquela história da «alma gémea») e também com o que as músicas permitiam ou não fazer. E obviamente que não era isso que as músicas queriam.
A – No DVD que acabaste de publicar, o Miguel Nuñez diz que tu dás uma grande liberdade aos músicos que tocam contigo. Como é que concilias essa liberdade sem correr o risco de te afastares daquilo que tu próprio queres?
LR – Com mais ou menos orientação, isso parte muito da qualidade dos músicos com que se trabalha. E eu procuro, à partida, trabalhar com músicos que têm esse entendimento: que são mais do que meros executantes, que têm também um lado criativo, mas que também têm consciência de até onde podem ir…
A – No espectáculo do CCB que deu origem ao DVD, apresentaste uma canção que tinha oito dias. É um acto muito íntimo e arriscado…
LR – Foi a primeira vez que fiz uma coisa dessas. Eu podia ter trabalhado com o Miguel, nos dias em que ele esteve em Portugal antes dos concertos. Mas quis que a música aparecesse no momento do espectáculo em que estou sozinho em palco, um momento de exposição total…
A – Ao que parece, resultou.
LR – Não deixa de ter algum risco. Apresentar uma canção nova é sempre um risco. Mas a mim soube-me bem.
A – E tornou-se no primeiro êxito deste disco…
LR – As canções às vezes pregam-nos partidas. Eu lembro-me de que a Feiticeira foi, salvo erro, o terceiro single do primeiro álbum: houve o Fora do Tempo, o Neva sobre a Marginal, e só depois a Feiticeira. E foi o que foi. As canções são, de facto, uma coisa viva. São como as crianças: quando começam a andar, nós não sabemos para onde é que vão…
A – A partir do momento em que começaste a cantar sozinho, passaste a assumir mais a tua faceta de autor, apesar de já teres assinado algumas canções no Trovante…
LR – Algumas, sim. Porque o Gil é um compositor compulsivo, e é bom, e isso fazia com que outras pessoas, como eu, não sentissem necessidade de fazer mais coisas. Foi, de facto, uma segunda etapa na minha vida: descobrir em mim o lado do compositor, o lado de autor que não está preocupado em fazer uma coisa de consenso para uma entidade chamada Trovante.
A – Tiveste alguma formação musical?
LR – Tive a maior escola do país, que é a do autodidactismo. Tive grandes professores na instrução primária – que me ensinaram desde pequenino que a música é tão importante como o ar que se respira – e, mais tarde, quando comecei a tocar guitarra, tive um professor extraordinário, o Edmundo Machado de Oliveira, que me abriu muitos horizontes na música. Mas sou, ainda assim, um autodidacta. E não tenho nenhum prazer nisso, sinto enormes lacunas em termos de conhecimento académico. Mas, por outro lado isso também me dá a hipótese de trabalhar com grandes músicos, e se calhar com melhores resultados do que se fosse eu a trabalhar as músicas sozinho. É uma incógnita, mas acho que se calhar assim está bem…
A – Olhando para estes 30 anos, vês muitas coisas que aches que devias ter feito e não fizeste?
LR – Eu acho que não. Todo o percurso que fiz até aqui é uma cadeia com vários elos, e uns são consequência de outros. Vivo muito tranquilo com aquilo que me aconteceu, porque vivo muito tranquilo com o que sou hoje em dia…
A – Não és um homem de arrependimentos?
LR – Nada. Mesmo em relação às coisas mais negativas que me aconteceram na vida eu acho que tudo isso é uma aprendizagem, passe a «orientalice». E cada coisa que corre menos bem é o tal elo da cadeia que faz com que as coisas tenham sentido…
A – Paralelamente ao teu trabalho, como pessoa tens sido também um homem empenhado em várias causas. Acreditas que o artista tem de ser um homem comprometido?
LR – Não, mas acho que quem tem tempo de antena, quem tem exposição pública e consegue chegar às pessoas de uma forma agradável, pode passar recados de uma forma provavelmente mais eficiente do que outra qualquer. E, existindo esta possibilidade, acho que é um enorme desperdício não a aproveitar. Mas não posso dizer que tem de ser assim. É uma opção de cada um.
A – Tu tens uma relação muito especial com Cuba desde há quase trinta anos. Acompanhaste certamente as notícias dos últimos tempos…
LR – A primeira coisa que fiz foi ligar para os meus amigos de lá para saber como é que estão as coisas. É o que faço normalmente: se há um furacão, eu ligo-lhes para saber como é que estão, são amigos de longa data. O Miguel Nuñez é como se fosse meu irmão, é meu compadre, sou padrinho da filha dele. Estou atento, assim com eles estão atentos ao que se passa cá…
A – Segues com preocupação aquilo que se passa lá agora, com as alterações previsíveis após a saída de cena de Fidel?
LR – É uma preocupação relativa. Obviamente que haverá alterações, é fatal, mas eu tenho uma enorme confiança nos cubanos. E, historicamente, eles sempre resolveram os seus problemas, foram sempre donos e senhores do seu nariz. As preocupações são óbvias, mas Cuba é muito mais do que Fidel ou não Fidel, Raul ou não Raul, embora se queira personalizar a questão. Mas na génese e na base de tudo está o povo todo, essa é a verdade.
A – Agora, que estás à beira dos 50 anos de vida e tens vários filhos, sentes que algum deles vai continuar o teu caminho na música?
LR – Há os que gostam mais de cantar, há os que gostam menos. Mas, provavelmente por terem nascido dentro do «caldeirão» e por para eles ser comum verem uma guitarra e um piano, verem lá em casa os músicos que vêm na televisão, isto para eles é uma coisa normal. Têm os seus ícones, claro. Mas não tenho qualquer tipo de atitude de pai-babado em estar a identificar se algum deles seguirá a música…
A – Não tens uma atitude orientadora, nesse aspecto?
LR – A única atitude orientadora que eu posso ter é o meu exemplo: tem de se acreditar muito naquilo que se faz, tem de se ser perseverante e ter uma grande dose de humildade. E tem que se trabalhar muito.
A – Os teus próximos trinta anos, como vão ser?
LR – Isso quer dizer que eu chego aos 80? O bonito da música é o imprevisto. E, tal como há 30 anos eu não sabia como ia ser, não faço ideia do que serei daqui a mais 30. Posso dizer que para o ano vou fazer um novo disco de originais, mas se calhar saímos daqui e há um telefonema e as coisas acontecem de forma diferente. A vida ensinou-me que não vale a pena fazer projectos a muito longo prazo. Este inesperado não me irá nunca deixar. No ano passado, em Setembro, estava a preparar-me para ir de férias e recebi uma chamada a convidar-me para ir cantar com a Simone… Era a última coisa em que pensava. São estas coisas que fazem com que isto seja muito aliciante.
Revista Autores - Jul./Set. 2006