Do lado de cá da música

Do lado de cá da música

Aos 46 anos é um dos nomes mais importantes do jazz feito em Portugal. Tanto que acaba de ser distinguido com o Grande Prémio do Autor, atribuído este ano pela primeira vez pela SPA. Nos últimos anos, o seu nome aparece frequentemente ligado ao de Maria João, a primeira dama do jazz lusitano, mas também aos de Bernardo Sassetti e Pedro Burmester, com já gravou alguns discos e fez muitas centenas de espectáculos. Chama-se Mário Laginha e só faz aquilo de que gosta.

Nasceu em Lisboa num dia 25 de Abril, 14 anos antes do outro. E, hoje, garante que «talvez não fosse músico se não tivesse havido o 25 de Abril.» E explica: «A música que comecei a ouvir e que me fez despertar para esse universo era uma música que se ouvia muito pouco. O 25 de Abril levou a que eu pudesse ter acesso a livros e a discos, a toda a informação cultural que começou a aparecer e que não existia antes. O 25 de Abril foi um dos pilares da minha opção de vida.»

Outro foi Keith Jarrett: um dia ouviu o lendário pianista num programa de televisão e pensou: «É isto que eu quero fazer.» No dia seguinte, o irmão, dois anos mais velho, ofereceu-lhe «Facing You», o primeiro disco a solo de Jarrett, «um monumento do piano solo do século XX». E o jovem Mário, que já tocava piano desde os cinco anos, agarrou-se com unhas e dentes àquela música.

«A princípio, eu queria tocar piano como o Jarrett», diz. «Depois acabei por perceber que não só não podia como, na verdade, não queria, tinha de criar a minha própria linguagem.»

E foi assim que decidiu ir até ao Luisiana, o clube de jazz de Luís Villas-Boas, em Cascais, e inscrever-se nas aulas que Mike Ross, ao tempo «refugiado» por razões espirituais na Linha do Estoril, ali leccionava.

«O resto, estudava em casa», conta Mário Laginha. «Até que achei que precisava de melhorar a técnica, e inscrevi-me no Conservatório. Ou seja: eu estudei jazz, e o jazz foi a razão pela qual eu estudei outras coisas.» Estudou com os professores Carla Seixas e Jorge Moyano, a princípio com a ideia de melhorar a técnica, mas acabou por completar o curso, aos 25 anos, com a nota máxima.

Foi, já se vê, uma decisão acertada. Mas não surpreendente. Afinal, desde sempre que Mário Laginha se sentia tentado pelas diversas áreas da música, e chegou mesmo a trocar o piano pela guitarra – numa altura em que, cansado das «exigências» dos amigos e familiares, agravadas pelos recitais de sábado à tarde na Escola Francisco Arruda, entendeu por bem largar as teclas e agarrar-se às cordas. Pelo caminho, ouviu toda a música que marcou a sua geração, de Jethro Tull aos Deep Purple, passando pelos Black Sabath e pelos Genesis.

O caminho

Mas se a música é uma paixão antiga de Laginha, nem sempre o seu caminho esteve traçado nesse sentido. Houve um tempo em que se dedicou à ginástica desportiva, com quatro horas de treino por dia, e chegou mesmo a pensar matricular-se no antigo Instituto Superior de Educação Física. Medicina e Biologia foram outros cursos em que chegou a pensar. Mas, quando descobriu o jazz, decidiu que «aquele» é que seria o seu caminho.

Não foi uma decisão pacífica. Filho de uma família de classe média, «onde não havia dinheiro para luxos, mas onde sempre houve a intenção de dar uma educação completa aos filhos», viu o pai encarar com natural preocupação o seu desejo de se dedicar exclusivamente à música. «Claro que, uns anos depois, já tinha um grande orgulho em mim.»

Hoje, com o apaziguamento dado pela distância, sente que a resistência familiar inicial acabou por lhe ser útil: «Se eu não tivesse a certeza daquilo que queria, se calhar tinha desistido. Essa ‘resistência amigável’ funcionou como um primeiro filtro, e deu-me para perceber que era mesmo o que eu queria fazer.»

O início não foi fácil. Para mais, Mário casou cedo, aos 23 anos, e teve de se confrontar com as dificuldades próprias de quem teima em fazer aquilo de que gosta. O primeiro trabalho que teve foi no teatro, na peça «Baal», no Teatro da Trindade. Pelo meio, foi pianista-de-hotel, três dias por semana, e fez vários trabalhos de estúdio:

«O primeiro disco em que toquei foi ‘A Rumba da Bomba’, do José Barata Moura, com arranjos do Luís Pedro Faro. Era uma coisa muito panfletária, ao estilo da época! Lembro-me dum verso que falava da ‘corja latifundiária’!»

Hoje sorri, ao pensar nesse tempo. Que foi, para ele, também um tempo de aprendizagem, tanto musical como humana: «Achei sempre que não podia renegar os vários alicerces que suportavam a minha formação», diz. «Mas, com o tempo, fui percebendo que não se podem misturar as coisas todas num caldeirão. A história está cheia de misturas mal conseguidas, embora também haja algumas bem conseguidas.»

A carreira

No jazz, o seu primeiro projecto «a sério» aconteceu com Maria João, de cujo primeiro quinteto fez parte, e com quem gravou dois álbuns, em 1983 e 1985. Depois, «cansado de alguma desorganização», afastou-se e fundou o Sexteto de Jazz de Lisboa, com Carlos Martins, Edgar Caramelo, Tomás Pimentel, e os irmãos Mário e Pedro Barreiros. Gravaram um disco, «Ao Encontro», e fizeram vários espectáculos.

Do Sexteto passou para uma formação mais alargada, a primeira com o seu nome: Mário Laginha Decateto, onde se juntavam músicos com experiências diversas, nas áreas da música clássica, do rock e da música popular. Além dos elementos do sexteto anterior (à excepção de Carlos Martins), estavam lá também José Nogueira, Jorge Reis, Eduardo Abreu, Mário Franco e José Salgueiro. Era um projecto ambicioso, criado propositadamente para o festival Jazz em Agosto, promovido pelo ACARTE em 1987.

Passou por outros projectos, e a todos imprimiu a sua marca pessoal e cada vez mais vincada: com Julian Argüeles, o grupo Ficções, os Cal Viva, Bernardo Moreira, Pedro Burmester, Bernardo Sassetti. E, de novo, Maria João, com quem desenvolve desde há quinze anos uma actividade regular:

«Gravámos com os Cal Viva o álbum ‘Sol’, e a coisa correu muito bem. Depois fizemos ‘Danças’ e ‘Fábula’. E, em meados dos anos 90, tivemos uma encomenda da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Eu escrevi as músicas, ela os textos, e fizemos o ‘Cor’, que também correu muito bem. E ensinou-me uma coisa: muitas vezes os compositores acham que os trabalhos por encomenda são uma limitação à criatividade, mas percebi que não tem que ser assim. Foi um disco que me deu um gozo incrível, e que me deu para entender que uma encomenda pode ser um estímulo óptimo para a criação.»

De seguida, compôs e fez os arranjos do disco «Lobos, raposas e Coiotes», gravado com a Orquestra Filarmónica de Hannover com direcção de Aril Remmereitt, que ficou encantado com o trabalho. E, em 2000, outra encomenda da Comissão dos Descobrimentos deu origem a «Chorinho Feliz», para assinalar os 500 anos da descoberta do Brasil: «Foram dez dias mágicos, em Copacabana, a trabalhar com uma banda de luxo: Gilberto Gil, Lenine, Armando Marçal, Nico Assumpção, Toninho Ferragutti, Helge Norbakken...»

Com este disco, o dueto com Maria João passou a ser uma parte integrante da sua vida e do seu trabalho. «Damo-nos muito bem, mesmo quando discutimos, e discutimos muitas vezes», diz. A sua pareceria com a cantora não o impede, porém, de tocar e gravar com outros músicos. E foi assim que, em 94, gravou os «Duetos» com Pedro Burmester, e dez anos depois, dois discos com Bernardo Sassetti – um deles, «Grândolas», também por encomenda, para assinalar o trigésimo aniversário do 25 de Abril.

O futuro

Com tanto trabalho, não espanta que só este ano tenha publicado o primeiro disco a solo, «Canções e Fugas», gravado no Teatro Miacaelense, em Ponta Delgada, e apresentado ao vivo na Culturgest, em finais de 2005:

«Nunca teria tido a ideia para este disco se não tivesse estudado os ‘Prelúdios e Fugas’ de Bach. A ideia surgiu-me há uns anos, na altura em que escrevi um tema inspirado na técnica de escrita do Bach, que é muito rigorosa. Decidi utilizar a minha técnica, que é o jazz, mas manter a estrutura da fuga. Fiz uma, e gostei. E toda a gente que ouviu também gostou. Então, lembro-me de ter pensado que, no dia em que fizesse um disco a solo, ia fazer temas dentro do meu universo habitual e, entre elas, um fuga, dentro da mesma tonalidade.»

E foi assim que, quando em 2004 Miguel Lobo Antunes o convidou para um recital na Culturgest, no ano seguinte, Mário lhe propôs fazer ali a antestreia do que queria gravar em disco. Lobo Antunes «comprou» de imediato a ideia, e Laginha passou a ter um prazo para cumprir, obrigando-se assim a escrever os seis temas e outras tantas fugas que compõem o disco.

À apresentação na Culturgest seguiu-se a gravação do disco, nos Açores – para onde foi atraído pelo piano Steinway que existe no Teatro Micaelense e que «tem um som único», mas também pela beleza do espaço. O resultado foi um disco belíssimo.

O êxito alcançado nos últimos anos permite a Mário Laginha olhar para o futuro com alguma serenidade. Com uma agenda de concertos bem preenchida, o músico sente-se hoje à vontade para fazer aquilo de que gosta. Mas nem sempre foi assim:

« Houve uma altura em que, não digo que me arrependi de ter optado pela música, mas pensei que se calhar não ia ser possível. Os primeiros anos foram de uma grande dureza, havia alturas em que não sabia se, no dia seguinte, ia ter dinheiro para comer. A fase mais difícil foi quando fiz 30 anos. Nessa altura houve uma moda mundial, que teve muito a ver com o Wynton Marsalis, em que o que dava era tocar standards. Ora, nesse universo, havia gente muito melhor do que eu. E, por outro lado, o mercado de concertos em Portugal era pequeníssimo. Então, durante um ano, eu praticamente não tive trabalho, e isso neste meio é mortal.»

Nessa altura, Mário Laginha confessa que sentiu «o chão a fugir debaixo dos pés». Era já pai de dois filhos, e agarrou-se ao que havia, para sobreviver: tocou em hotéis, em programas de televisão, deu aulas de música. E chegou mesmo a pensar tirar um outro curso, que pudesse assegurar-lhe a sobrevivência.

A mudança deu-se após a gravação de «Sol», e hoje considera-se «um músico privilegiado» por ser «um dos dez ou vinte instrumentistas em Portugal que vive há 13 anos sem ‘a corda na garganta’». No entanto, recusa-se a alinhar com a opinião dos que acham que este é um problema específico do mercado musical português: «Conheço músico incríveis em Inglaterra que não têm uma vida nada fácil.»

Sobre a ausência da sua música das rádios e das televisões, a princípio sentia-se injustiçado, mas agora, confessa, já se adaptou à ideia: «Para me sentir melhor, penso no que acontece com os músicos de outros países: se fores aos Estados Unidos, vês que o Keith Jarrett também não passa nas rádios de lá. O problema não é português, é mundial: cada vez há menos espaço nas televisões e nas rádios para a nossa música.»

Por feitio e por formação, considera-se «uma pessoa com um lado muito positivo, que aprendeu a ver sempre o lado bom das coisas». E acrescenta: «Acho que isto pode levar a uma reacção das pessoas, que começam a proteger mais, a amar com mais força o que é diferente. E, se há um mercado que funciona à volta do ‘mastiga e deita fora’, começa a haver um grupo grande de pessoas que cada vez mais quer conhecer coisas que nem toda a gente conhece, pessoas que fogem ao circuito convencional. Por muito que as coisas sejam difíceis, é sempre possível encontrar soluções.»

Um prémio e um incentivo

Um disco a solo, uma dúzia com Maria João, e mais uma mão cheia deles com outros autores e intérpretes fazem de Mário João Laginha dos Santos um dos músicos mais diversificados do nosso país. Referência central do jazz lusitano actual, Mário Laginha toca desde que se conhece: primeiro em casa, num piano vertical que os pais compraram para que ele e o irmão pudessem praticar a mais divina das artes, depois no Luisiana, na Academia dos Amadores de Música, no Conservatório.

Começou, como toda a gente, por tocar a música dos outros, antes de se aventurar ele próprio na composição. Actualmente, com um percurso sólido e bem definido, Mário Laginha continua muito parecido com o «miúdo» que, há vinte anos, andava pelo Hot Clube e tocava onde era preciso. A diferença está na grande consistência que a sua arte ganhou de então para cá.

O Grande Prémio do Autor com que foi agora distinguido pela SPA não é, pois, uma surpresa para ninguém, a não ser para o próprio: «Escusado será dizer que fiquei não só muito honrado, como até espantado. Porque a minha música não passa na rádio, apesar de um fazer música para muitas formações, e sempre achei que passava um bocado ‘ao lado’ das pessoas. Sinceramente, não esperava. Daqui a uns anos, talvez, mas agora não. Mas claro que fico felicíssimo. E é um incentivo muito grande, naturalmente, que me deixa muito reconfortado.»

Assim, com a simplicidade própria de todos os grandes criadores, Mário Laginha olha para esta distinção como mais uma coisa que o obriga a ser cada vez melhor e mais coerente consigo próprio. Ele, que de si próprio diz «ser feliz, às vezes», limita-se a prometer que vai continuar a fazer a música de que gosta, da única maneira que sabe: a sério e sem concessões. Porque essa é a única maneira que vale a pena.  

Revista Autores - Abr/Jun 2006