O filme de uma vida

O filme de uma vida

Começou a fazer crítica de cinema quase sem querer e acabou por tornar-se num dos mais respeitados profissionais do meio. Licenciou-se em Engenharia, mas do que gosta mesmo é de escrever. Chama-se Jorge Leitão Ramos e é, desde há trinta anos, um dos mais dinâmicos divulgadores de cinema.

A ele se lhe deve a mais completa sistematização da sétima arte lusitana, concretizada no Dicionário do Cinema Português, cujo segundo volume, editado em Janeiro desde ano e abrangendo a produção cinematográfica do período entre 1989 e 2003, foi agora distinguido com o Prémio José de Figueiredo, atribuído pela Academia Nacional de Belas Artes.


Autores – Como é que te tornaste crítico de Cinema?

Jorge Leitão Ramos – Olha, foi por acaso. Sempre me interessei por Cinema, mas nunca pensei ser crítico. Em 1975 eu estava a acabar Engenharia e trabalhava com o José Vieira Marques que organizava o Festival de Cinema da Figueira da Foz, entre outras actividades de dinamização cinematográfica. E um dia estávamos a discutir o «Cartas na Mesa», um filme do Rogério Ceitil que eu achava um lixo e ele achava interessante. E então ele propôs-me: ‘Porque é que não publicamos um texto, tu a dizer mal e eu a dizer bem, é capaz de ter graça’. E fizemos, para o Expresso. A prosa saiu, depois a Helena Vaz da Silva, que era a editora de Cultura, convidou-me para fazer um segundo texto, eu fiz, e fui à minha vida. Como disse, estava a acabar o curso e não tinha a mínima ideia de fazer disso um modo de vida. Embora, naturalmente, já gostasse muito de Cinema. E foi então que o Artur Portela Filho, que estava a formar o Jornal Novo, perguntou ao Seixas Santos se ele conhecia algum puto novo que quisesse fazer crítica de Cinema. E ele disse-lhe: ‘Não, mas vi um texto no Expresso de um tipo que eu não sei quem é, mas que parece ter piada.’ Ligou à Helena Vaz da Silva, que nem sequer tinha o meu número de telefone, mas que um tempo depois me disse, e lá fui eu…

A – Para o Jornal Novo…

JLR – Para o Jornal Novo. Aliás, é curioso que a génese da minha entrada para os jornais tem toda ela a ver com o Cinema português. Foi o meu primeiro texto, sobre o filme do Ceitil, e foi também aqui. Quando fui falar com o Portela Filho, ele perguntou-me qual tinha sido o último filme que eu tinha visto, e por acaso eu tinha visto o «Benilde ou a Virgem Mãe», do Manoel de Oliveira, uns dias antes. E então o Portela deu-me meia hora para escrever um texto sobre o Oliveira. Eu escrevi, ele gostou. E lá fiquei, a fazer crítica de Cinema…

A – Não vale a pena perguntar o quanto a crítica de cinema transformou a tua vida…

JLR – Ah, claro que transformou. Deixei de ser engenheiro por causa disso. E até cheguei a ter uma oferta de emprego como engenheiro que era muito interessante financeiramente, mas achei que era mais divertido fazer crítica de cinema. Isto também tem a ver com a época: estávamos em 1975, era o momento de mudar o mundo, foi tudo muito motivado pela conjuntura revolucionária. Mas não me arrependi.

A – Além de crítico também és professor. O que é que te dá mais gozo: o ensino ou a escrita?

JLR – É escrever, sem dúvida. Gosto muito de dar aulas, não é algo que me seja penoso, não é para pagar o bife. Por isso não estou nada arrependido de ser professor. Mas eu fui dar aulas porque descobri cedo que o meio jornalístico é muito complicado, sobretudo para quem vende opinião, como é o meu caso. Por isso precisava de outro modo de vida que me permitisse não ter que fazer «fretes». Para poder bater com as portas se me apetecesse…

A – E bateste com a porta muitas vezes?

JLR – Duas vezes, no Diário de Lisboa e no Se7e. A vantagem que eu tenho é poder dizer o que penso, sem me preocupar com o que vai acontecer. A maneira como saí do Se7e, por exemplo: o Cáceres Monteiro tinha acabado com a crítica de teatro, porque achava que ninguém ligava nenhuma ao teatro – o que, para um director dum jornal de espectáculos é um ponto de vista espantoso! E a «Mãe Coragem» estava no Teatro Nacional – numa co-produção com o Teatro Aberto, encenada pelo João Lourenço – a esgotar a lotação. Eu irritei-me com aquilo e, um dia, fiz uma crónica de televisão onde dizia «deixe lá a televisão e vá mas é ver a ‘Mãe Coragem’». Obviamente, fiz uma coisa que eu sabia que o director não queria, e que era quase uma insubordinação, porque utilizava o espaço onde deveria falar de televisão. E por isso tinha que me vir embora…

A – Uma das características que eu destacaria no teu trabalho é a tua capacidade de falar dos filmes numa linguagem perceptível pelo grande público, coisa que nem sempre acontece com outros críticos…

JLR – Eu não critico as pessoas que «escrevem esquisito», mas sou profissional da escrita há 30 anos e sei que quando escrevo esquisto é porque não tenho as ideias muito claras. É óbvio que, se estiver a escrever para uma plateia de especialistas posso usar uma linguagem mais técnica, mais rebuscada, mas para um jornal acho que não deve ser assim. De modo que tento exprimir-me tendo a noção das diferenças entre os públicos dos jornais para onde escrevo.

A – O Dicionário do Cinema Português que publicaste este ano é o segundo volume de uma obra que teve o primeiro editado há mais de 15 anos, em 1989…

JLR – Escrevi o primeiro porque precisava de um dicionário de cinema português e não tinha, porque não havia nenhum. E foi assim que surgiu o primeiro volume, que vai de 1962 a 1988. E, nessa altura, o Zeferino Coelho [director da Editorial Caminho] disse-me: ‘Agora queremos o resto’ – que era sobre o período entre 1896 e 1961. E então comecei a pesquisar nesse sentido. Uma parte grande do que está no dicionário não tem nada a ver com o cinema, mas sim com as outras coisas que os actores fizeram, quer no teatro, quer na televisão. Só que não há uma base de dados sobre Teatro, em Portugal! E o que é que eu fiz? Fui para a Hemeroteca e comecei a folhear os jornais, desde os anos 30 à actualidade. Ora como, para além de crítico de cinema sou professor, foi um trabalho que durou dez anos. E agora tenho dez mil peças de teatro numa base de dados informática. E então pensei que, o melhor era deixar esse para depois e fazer já um dicionário que fosse a continuação do outro, sobre o período de 1989 a 2003. Ou seja: este volume surge porque não fiz o outro. Vou fazer agora, e espero tê-lo pronto dentro de dois anos. E, agora, é um trabalho para a vida…

A – Ou seja: arriscas-te a ser o Houaiss do Cinema Português…

JLR – Pois é. Agora, já vejo um filme e peço logo a ficha técnica ao realizador, que me manda um ficheiro informático que guardo. Para o primeiro volume, esses dados foram todos tirados à mão, consultando filme a filme! E é claro que com os novos meios informáticos a quantidade de informação é maior.

A – Para lá do período a que se referem, há diferenças de fundo entre o primeiro e o segundo volume do Dicionário?

JLR – Além dos dados que o outro tinha – e era para ser um volume único, não era para ter «filhos» – os filmes vêm todos com uma sinopse, a ficha técnica muito mais alargada, e trazem a indicação de todas as personagens. E os textos são, em grande parte, a recuperação de artigos que tinha publicado em jornais, enquanto que, no outro, foram praticamente todos escritos propositadamente.

A – Aprendeste muito ao fazer estes livros? Nessa pesquisa minuciosa descobriste alguma coisa que não soubesses?

JLR – Não posso dizer que sim porque o dicionário é uma consequência, nasce do meu trabalho como crítico de cinema, um trabalho continuado feito ao longo dos anos. Essa aprendizagem passa-se todos os dias, mas não é especificamente para o dicionário…

A – Pergunto isto porque me lembro de, quando saiu o primeiro volume, te ter ouvido dizer que precisaste de consultar os arquivos da PIDE para descobrires a data de nascimento do Carlos Paredes, que não dizia a idade a ninguém…

JLR – É verdade. O Paredes era muito esquivo quanto a isso. Para este volume aconteceu-me algo parecido com a Lúcia Sigalho, que também não me disse a idade. E não vem lá. Teria sido relativamente simples descobrir, mas eu não quis escarafunchar, por uma questão de pudor…

A – Por ser uma senhora…

JLR – Não sei se foi por isso, mas optei por não pôr esse dado. A origem da informação é muito variada e, fora as datas e os locais de nascimento, todos os dados são confirmados. Eu não confio muito nos próprios quanto aos seus currículos, não porque pense que mintam, mas porque é frequente as pessoas enganarem-se relativamente a aspectos da sua própria carreira. Por isso confronto sempre os currículos com os meus dados, e é frequente eu saber mais de um actor ou de um realizador do que ele próprio…

A – Como é que encaras o cinema português actual?

JLR – O cinema português tem um problema: o modelo de financiamento actual já não é suficiente. Há uma nova lei de financiamento que já passou por sete ministros e nunca mais sai! De modo que o cinema português continua diferente das outras cinematografias, do ponto de vista estrutural.

A – E deve continuar a ser cinema de autor, ou deve ser mais comercial?

JLR – Mas o cinema de autor pode ser comercial. O Scorsese, o Ford, o Hitchcock, todos eles fazem cinema de autor que chega às pessoas. E, em Portugal, o Fonseca e Costa, por exemplo, também. Mas, se queremos discutir comércio, é bom que se diga que o único cineasta comercial que temos é o Manoel de Oliveira, de quem agora acaba de ser editada uma colecção de 13 dvd’s em Espanha. Mais ninguém consegue.

A – E a nova geração, que te parece?

JLR – O grande risco de uma parte dos cineastas da nova geração é que não têm nada para dizer. E eu acho que só se deve fazer um filme, ou escrever um livro, ou compor uma canção se houver alguma coisa para dizer. O Claude Chabrol dizia que quem goste de fazer filmes e há quem goste de estar no cinema. E em Portugal há muita gente que gosta de estar no cinema. O problema não é ser comercial, o problema é o que se vende. O que faz comércio é «O Crime do Padre Amaro», que só serve para vender as nádegas da rapariga? Tenham dó! O Eça não fez mal a ninguém! Agora que se façam mais filmes como a «Tentação», ou como o «Jaime» ou o «Adeus Pai», acho muito bem, são filmes que fazem muita falta.

A – Durante alguns anos também foste crítico de televisão…

JLR – Hoje não vejo televisão, porque e não me interessa aquilo que a televisão dá. Vejo a SIC Notícias, os noticiários, uns jogos de futebol, e mais nada. Comprei um plasma, mas foi para ver cinema. Televisão já não vejo. Não é por snobismo, é porque não me interessa. É só telenovelas e concursos…

A – E, no entanto, paradoxalmente deveria haver mais por onde escolher, já que a oferta é muito maior do que há uns anos….

JLR – O Estado tinha a obrigação de o fazer. A RTP deveria ser uma televisão de referência, senão não vale a pena. Eu não sou nada adepto das teorias da conspiração, mas não tenho a certeza de que fazer uma televisão pública igual às privadas não seja uma estratégia deliberada, para um dia se concluir que não vale a pena manter um serviço público de televisão.

A – Aliás, a televisão pública usa hoje as mesmas técnicas de contra-programação das estações comerciais…

JLR – E o problema é que eu não tenho a certeza de que as pessoas só queiram telenovelas e concursos. Praticamente deixou de haver cinema em prime-time, que é uma coisa que não se entende. Lembro-me de, quando o Proença de Carvalho foi para a RTP, ter sido convidado para um almoço, com outros jornalistas, onde se fizeram muitas críticas ao que a televisão passava. E lembro-me de ele ter dito que «a televisão não é para nós, é para eles», entendendo por «eles» a camada mais iletrada da população. E, hoje, parece que a televisão é mesmo para «eles», o que até comercialmente não faz sentido…

O engenheiro que gosta de filmes

Nasceu em 1952, em Odivelas, e vive em Algés há quase trinta anos. Começou a escrever crítica de cinema quase por brincadeira, no Expresso, mas foi rapidamente topado por Alberto Seixas Santos, que o recomendou para o Jornal Novo. Iniciou aí uma carreira de líder de opinião que o levou às redacções do Diário de Lisboa, do Expresso (e novo, e por duas vezes), do Se7e, onde fez também crítica de televisão.

Paralelamente, é professor do ensino secundário, na área da Electrotecnia e Electrónica, e desenvolve pontualmente actividades pedagógicas na área do audiovisual. Colaborou em diversas obras sobre cinema, traduziu dois livros de Woody Allen, e publicou uma biografia de Sergei Eisenstein antes de, em 1989, ter publicado o «Dicionário do Cinema Português (1962-1988)», obra que teve agora continuidade com o lançamento de um volume dedicado ao período de 1989 a 2003. Para daqui a dois anos planeia publicar um terceiro – que na realidade será o primeiro, abrangendo a época entre 1896 a 1961.

Confessa que já lhe passou pela cabeça escrever um livro de ficção, mas nunca tentou porque não sentia que tivesse «uma história que quisesse contar». Não põe de lado essa hipótese, que considera remota, mas sabe que, com toda a certeza, não escreverá teatro, embora gostasse: «Porque tenho uma admiração louca pelas pessoas que são capazes de contar uma história pelo diálogo e, sobretudo, que conseguem caracterizar assim as personagens.»

A vida de Jorge Leitão Ramos gira em volta do cinema – e até a sua entrada para a SPA, em Fevereiro de 1979, aconteceu pela mão de um realizador, Eduardo Geada. Quinze anos mais tarde tornou-se cooperador e nos últimos anos tem integrado os corpos gerentes da Sociedade. Defensor de uma crítica interventiva, acha que o crítico tem que arriscar, reivindicando «o direito à asneira» - que, no entanto, procura corrigir sempre que se dá conta:

«Já me aconteceu ver um filme, não gostar, e tempos depois voltar a ver e mudar de opinião. E quando isso acontece, assumo.» De resto, entende que o crítico é igualmente criticável: «A relação entre críticos e criadores, ou é baseada no respeito mútuo, ou não existe. De resto, sempre que me convidam para debater com um realizador de cuja obra eu não gosto, eu vou. Não quero ter razão, mas vou, porque as minhas opiniões são tão discutíveis como os seus filmes.»  

Revista Autores - Jan./Mar. 2006