O último ano antes da liberdade

O último ano antes da liberdade

Em Agosto de 1973, poucos em Portugal se atreviam a imaginar que aquele Verão morno seria o último passado em clima de ditadura. Não fosse o cinzentismo geral que então caracterizava o país, e os adolescentes de há 40 anos até teriam algumas razões para se sentir satisfeitos.

Afinal, à parte os que por influência familiar ou do círculo de amizades possuíam já alguma consciência política – e, por essa razão, olhavam com desassossego a aproximação da altura em que os mancebos seriam chamados a morrer ou matar em África –, a maioria dos rapazes e raparigas dessa época queria o que querem sempre os jovens desta idade: divertir-se, descobrir coisas, encontrar a sua linguagem, criar os seus códigos, desenhar o seu mapa de referências.

Ora criatividade foi coisa que não faltou em 1973. Em Portugal – onde ganhavam corpo as primeiras experiências de «cinema novo», onde a literatura teimava em não morrer, e onde havia uma vanguarda musical cada vez mais influente – mas sobretudo no resto do mundo: Londres, Paris, Amesterdão, Nova Iorque eram palcos fervilhantes de propostas artísticas e culturais a que os jovens portugueses só muito excepcionalmente podiam aspirar ter acesso.

Do que se passava no mundo a sério ia-se sabendo, aos poucos, graças principalmente às redes paralelas de comunicação que se estabeleciam e que faziam com que os discos fossem chegando, juntamente com notícias, alguns livros também, e, vez por outra, havia até algum editor mais audaz que se permitia umas quantas ousadias, sempre muito cobiçadas pelos mais sedentos de conhecimento.

E foi assim que, em 1973, alguns jovens portugueses se maravilharam, como os do resto do mundo, com The Dark Side of the Moon, o disco que juramentava os Pink Floyd como inventores de uma música que vai para lá do tempo de cada geração.

Lançado em Março no mercado mundial, depois de «testado» ao vivo na digressão de quase doze meses que antecedeu a publicação, o disco foi um êxito imediato e tornou-se em poucos anos o álbum mais vendido da história da indústria discográfica.

Manteve-se nessa posição durante bem mais de uma década, até ser ultrapassado, nos anos 80, pelo Thriller, de Michael Jackson, que terá somado vendas de mais de 60 milhões de cópias. Mesmo assim, The Dark Side mantém-se ainda hoje no segundo lugar da lista, com 50 milhões de exemplares. E sempre a aumentar.

Num ano que veria nascer grupos como os Aerosmith, os Kiss, os AC/DC, os Queen e até os Secos e Molhados (a banda, criada pelo português João Ricardo, onde há-de revelar-se Ney Matogrosso), há também espaço para ouvir as novidades propostas por David Bowie (Alladin Sane e, no final do ano, Pin Ups), pelos Led Zeppelin (Houses of the Holy), por Paul McCartney e os Wings (Band on the Run) ou pelos Black Sabath (Sabbath Bloody Sabbath).

No último trimestre do ano, Elton John publica Goodbye Yellow Brick Road, o seu álbum mais maduro, lançado uma semana antes de os Genesis apresentarem Selling England by the Pound, o quinto disco da carreira do grupo.

Em Portugal, onde a cultura francófona mantém ainda, à época, uma posição dominante (que perderá alguns anos depois a favor da anglofonia), desperta também atenção o trabalho de Léo Ferré que se segue ao aclamado La Solitude, gravado um par de anos antes com a banda rock Zoo. O novo disco chama-se Il Ny a Plus Rien e, com ele, Ferré dá início a uma nova fase da sua música, marcada pelo carácter claramente sinfónico das composições e pela grandiosidade dos acompanhamentos, pensados para a orquestra que o próprio Léo Ferré se encarrega de dirigir.

Da produção nacional também houve grandes e boas novidades: Amália grava um disco peculiar e atípico, A Una Terra Che Amo, com vários temas populares italianos interpretados ao estilo da fadista; Fernando Tordo e José Carlos Ary dos Santos vencem o festival RTP da canção com uma Tourada que põe a ridículo alguns penachos do regime; o grupo de “rock progressivo” Petrus Castrus publica Mestre, com poemas de Alexandre O’Neill, Ary dos Santos, Sophia de Mello Breyner, Pessoa, Bocage e Manuel Bandeira; José Mário Branco faz editar o seu segundo álbum, Margem de Certa Maneira, e assina a produção e os arranjos de Venham Mais Cinco, de José Afonso.

Ainda na música, foi também nesse ano que Paul Simon gravou There Goes Rhymin' Simon, o segundo LP a solo desde a interrupção da parceria com Art Garfunkel, ocorrida em 1970. Duas canções, «Kodachrome» e «American Tune», seriam suficientes para que esse disco entrasse na história. E porque a história se faz de pequenas coisas (que não necessariamente coisas pequenas, é bom de ver), quem então já gostava de Deep Purple, ficou a gostar ainda mais depois de ouvir Made in Japan, gravado ao vivo e lançado mesmo no final de 72. Chegou a Portugal só alguns meses depois, como era hábito, mas a espera valia a pena. Quem já praticava ou ambicionava praticar o riff simples, mas inconfundível, de «Smoke on the Water», sentia-se irmanado no som de palco de Ritchie Blackmore. Por tudo isto, o disco permitia «recriar», de algum modo, o concerto e o seu ambiente – e isso, em 1973, era a felicidade.

Num país triste como era Portugal por essa altura, conhecer e ter acesso a discos como estes era em si mesmo um privilégio. Os álbuns passavam de mão em mão e de casa em casa, eram ouvidos e discutidos demorada e aprofundadamente, originavam zangas e paixões. E eram desfrutados, muito desfrutados.

O mesmo se passava com os livros – e aqui com dificuldades ainda maiores, mais que não fosse porque a edição literária era alvo de redobradas atenções por parte dos «vigilantes» do regime.

Mas isso não chegava para impedir, por exemplo, que metade do país se rebolasse de gozo com Dinossauro Excelentíssimo, sátira brilhante de José Cardoso Pires e peça literária de calibre, publicada uns meses antes.

Outros preferiam rir de outra forma, com a Grande Enciclopédia Vilhena, cuja publicação se inicia por esta altura: uma colecção de fascículos organizada como uma enciclopédia, onde José Vilhena, no seu estilo peculiarmente culto, de algum modo acertava contas com a sobranceria de alguns literatos.

Eram risos diferentes contra um mesmo alvo, a ditadura de quase meio século que oprimia o presente e inviabilizava o futuro.

Naquele tempo, as livrarias eram lugares onde se vendiam livros, mas, sobretudo, se aprendia a conhecê-los e a gostar deles. E as discotecas não eram ainda espaços para dançar e beber até cair: eram lojas especiais, onde se ficava a conhecer as novidades e se podia ouvir os discos antes de comprá-los.

Nas discotecas e nas livrarias de 1973, um cliente era, por regra, também um amigo. Quem convive regularmente com leitores sabe que os livros ajudam facilmente a traçar o retrato de quem os lê, mais do que de quem os escreve. E isso, no espaço personalizado e de intimidade que era o das livrarias, dava azo a cumplicidades que ultrapassam uma mera relação comercial.

O governo e a sua polícia privada tinham, pois, razões para se preocuparem com estes espaços particularmente atreitos à «subversão». A agitação política desses tempos era obrigatoriamente discreta e fazia-se sobretudo através de actividades clandestinas ou de acções que procuravam contornar as restrições impostas pelo regime à livre expansão de ideias. E as livrarias eram, por natureza, um bom ponto de encontro de «subversivos».

Não por acaso, o ano de 1973 tinha começado de forma particularmente agitada, com a detenção, na noite de véspera de Ano-Novo, do grupo de católicos que se juntou em vigília, na capela do Rato, em resposta ao apelo lançado pelo papa Paulo VI em favor da paz.

Ora defender a paz num país dominado por uma ditadura e acossado por uma guerra em três frentes não era atrevimento que pudesse passar em claro. O templo acaba invadido pela polícia, que prende os quase 70 participantes, alguns dos quais serão de seguida remetidos pela PIDE para Caxias. Do grupo de detidos fazem parte, entre outros, Luís Moita, Francisco Pereira de Moura, Nuno Teotónio Pereira, José Galamba de Oliveira, Jorge Wemans ou Francisco Louçã, ainda adolescente.

A intervenção da polícia acaba por dar uma dimensão à vigília que ultrapassa as expectativas do grupo organizador, que não tinha filiação e onde se incluíam crentes e não-crentes – como Carlos Antunes, à época dirigente das clandestinas Brigadas Revolucionárias e que poucos meses antes tinha encenado uma espectacular largada de porcos «fardados» de almirante, no Rossio, por ocasião da «reeleição» de Américo Tomás.

O semanário Expresso, cujo primeiro número sai a 6 desse mesmo mês de Janeiro, dá o relevo possível à notícia da intervenção policial na capela do Rato. Para o público português, era, evidentemente, um acontecimento mais importante do que a adesão à CEE do Reino Unido, Irlanda e Dinamarca, que se concretizou a 1 de Janeiro. O episódio do Rato deveria ter sido a manchete desse número inaugural do semanário, mas a Censura não permitiu, e o jornal acabou por incluir apenas uma caixa com a versão oficial do Ministério do Interior, a única autorizada.

O aparecimento do jornal dirigido por Francisco Pinto Balsemão representou um novo fôlego para os movimentos antifascistas, quer dando voz aos deputados da chamada «ala liberal» da Acção Nacional Popular, (de que o próprio Balsemão fazia parte, juntamente com Sá Carneiro, Mota Amaral, Magalhães Mota e Miller Guerra, entre outros), quer divulgando, dentro do apertado espaço de manobra deixado pelos censores, outras iniciativas de oposição ao regime. Não admira, pois, que o Expresso fosse, desde o início, alvo de uma leitura cuidada e muito previdente por parte dos censores.

O Exame Prévio, a que estavam sujeitas todas as publicações periódicas, tinha sido uma criação de Marcelo Caetano – ou, melhor dizendo, uma recriação: nem mais que a velha Censura com nome novo, como se tornou característica de parte significativa das «transformações» anunciadas pelo regime após a queda e morte de Salazar, em 1968 e 1970, respectivamente.

Recebida com esperança até por vastos sectores da Oposição, a «primavera marcelista» consistiu, em grande parte, numa mera operação de rebranding dos instrumentos do regime, e não se passou muito tempo até se tornar perceptível que Marcelo queria mudar alguma coisa para que tudo continuasse na mesma. Para isso, apadrinhava uma aparente e muito tímida abertura política, ao mesmo tempo que mantinha inalteradas as estruturas e a filosofia do regime.

E foi assim que, em 73, além da Censura, também a União Nacional já tinha passado a Acção Nacional Popular e a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) fora transformada em DGS (Direcção-Geral de Segurança), com idênticas atribuições repressivas, estatuto de arbitrariedade semelhante, os mesmos agentes, os mesmos métodos – e as mesmas masmorras.

No ano de 73, a esperança que alguns tinham ainda ingenuamente depositado numa transformação do regime «por dentro» dera lugar já à decepção e era cada vez mais consensual a ideia de que o regime não mudava, tinha de ser mudado.

Até ao aparecimento do Expresso, as vozes dissonantes apenas se faziam ler nas páginas do República, do Diário de Lisboa e de alguns periódicos regionais de referência – com destaque para o Jornal do Fundão, mas também para o Notícias da Amadora ou o Independência d’Águeda, além de outros, de ainda menor dimensão.

Na Primavera de 73, um outro título, pequeno mas muito interventivo, veio juntar-se a este grupo de resistentes: A Opinião, que se publicava no Porto mas foi formalmente apresentada em Aveiro, durante o III Congresso da Oposição Democrática. Mais do que um novo jornal, era um jornal renascido, já que durante anos tinha sido um órgão de informação local de Oliveira de Azeméis alinhado com o regime. Com a morte do último proprietário do título, o filho (o jornalista Júlio Pinto, também já falecido) terá decidido «oferecer», literalmente, o jornal à Oposição, entregando-o a quadros do PCP que actuavam na legalidade.

Para além destes jornais, mais indubitavelmente demarcados da linha política oficial, em vários órgãos de comunicação ganhava corpo e influência uma nova geração de jornalistas, chegada às redacções entre fins da década de 60 e princípios da de 70, que procurava romper os cercos e os vícios desse tempo. Era o que se passava com A Capital – de cuja redacção sairá, daí por um par de anos e já em liberdade, parte significativa do «núcleo duro» fundador do semanário O Jornal.

Na rádio, os «serviços de noticiários» do Rádio Clube Português, dirigidos por Luís Filipe Costa, procuravam imprimir alguma frescura ao bafio das ondas hertezianas. E a Rádio Renascença, emissora da Igreja Católica, albergava um conjunto de profissionais e de programas que não se conformavam com o status quo e que constituíam uma fonte de preocupações para os zeladores da ordem e dos bons costumes – casos do Página Um, dirigido por José Manuel Nunes, ou do Limite, de Leite Vasconcelos, Carlos Albino e Manuel Tomás, que em 1974 haveria de servir de plataforma para a transmissão de Grândola Vila Morena, sinal para o arranque das operações militares de 25 de Abril.

Algo mexia, pois, nas “praias” de Portugal. Os reflexos da crise do petróleo, espoletada nesse ano e que obrigaram mesmo a restrições de circulação automóvel, aumentavam o mal-estar geral, criando dificuldades de abastecimento que começavam a sentir-se por todo o território.

O aumento brutal do preço dos combustíveis no mercado internacional, decidido pela Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) como protesto contra o apoio dos Estados Unidos a Israel durante a Guerra do Yom Kippur, tinha efeitos que era impossível remediar, mesmo se essa espiral inflacionária levou algum tempo a fazer-se sentir em Portugal, devido às políticas de controlo económico do regime. Por isso, na venda ao público, os combustíveis começaram por ter aumentos ligeiros, muito abaixo dos novos custos reais do petróleo. Um litro de gasolina chegou aos 7 escudos e 50 centavos (transposto para valores actuais, dá menos de 4 cêntimos), numa altura em que o salário médio dos portugueses não ultrapassaria os cinco mil escudos (25 euros) e comprar um automóvel podia custar entre 50 e 60 contos (250, 300 euros). Modelos como o Taunus e o Cortina, ambos da Ford, o 127 da Fiat, o GL da Subaru, o CS da BMW ou mesmo os intemporais e muito populares “carochas” da Volkswagen, alimentavam os sonhos da classe média.

Mas a inflação começava a fazer-se sentir. Ao longo do ano, o custo de vida em Portugal aumentou 25 por cento – um valor que só não foi mais elevado devido à política de preços tabelados praticada pelo regime. Por essa altura, a publicidade garantia que «nove em cada dez estrelas de cinema usam Lux», e havia até um anúncio com Jane Fonda. Mas nem todo o detergente do mundo parecia ser suficiente para limpar a imagem do regime, cada vez mais desgastada no exterior.

Em visita oficial a Londres, em Julho, Marcelo Caetano teve de se confrontar com a mais hostil recepção da história a um governante português no estrangeiro. E nem o enevoado típico do verão inglês conseguiu dissimular o estrondo mediático da manifestação de protesto contra a visita, convocada após as revelações do Padre Hastings, uma semana antes, daquele ficaria depois conhecido como o Massacre de Wiriamu, em Moçambique. Portugal, uma vez mais, entrava na história. Desta vez pelas piores razões.

Para a acção, no domingo anterior ao início da visita, alguns milhares de pessoas (5 mil ou 10 mil, consoante as fontes) juntaram-se junto à embaixada portuguesa, deixando claro que Caetano não era bem-vindo à capital britânica. Alguns, bastantes, eram portugueses, imigrados em Londres ou que para lá tinham viajado propositadamente para a recepção a Caetano: comunistas, muitos deles, que procuravam dar visibilidade internacional à luta contra o regime, mas também numerosos democratas independentes e alguns dirigentes do recém-criado Partido Socialista (nascido a 19 de Abril desse ano, em Bad Münstereifel, na Alemanha) como Mário Soares ou Salgado Zenha.

Com o «apoio logístico» do PC da Grã-Bretanha e de organizações laborais e sindicais inglesas, foram sobretudo os comunistas portugueses quem se ocupou da preparação e «montagem» da manifestação, com o rigor que lhes é conhecido. Num testemunho publicado muitos anos depois, Manoel de Lencastre, um dos participantes na preparação do protesto, lembrava os apoios recebidos, de variados sectores: «Tudo estava preparado. Tínhamos bandeiras, dísticos, panos com inscrições.» Já sobre a participação dos fundadores do PS, o testemunho do comunista é mais severo: «Os socialistas faziam tudo para se afastarem de nós. Recebiam ordens terminantes de um senhor que se dizia viver na Suíça – chamava-se António Barreto. Começamos a tomar conhecimento de que Mário Soares chegaria a Londres para tomar parte na manifestação. Mas não era a manifestação propriamente dita que lhe interessava. Pretendia aparecer na frente, ser visto. Queria ser o chefe.»

Fossem quais fossem as intenções de cada um dos que participaram, facto é que o sucedido representou um abalo grande para o cada vez mais debilitado lusofascismo, cujo estertor se mostrava agora uma inevitabilidade.

Para que se entenda bem o país que Portugal era em 1973, basta pensar que a esperança de vida pouco passava dos 70 anos para as mulheres e nem a isso chegava para os homens. Pior ainda: a taxa de mortalidade infantil era de quase 40 por mil e apenas uma minoria de 37,5 por cento dos partos aconteciam em estabelecimentos de saúde.

O analfabetismo superava os 30 por cento em média, chegando a ultrapassar largamente os 50 por cento nas regiões mais isoladas. Em 1973, mais de metade da população vivia sem água canalizada, quase 40 por cento não tinha esgotos e em mais de 30 em cada 100 lares não havia ligação à rede eléctrica. Mulheres trabalhadoras não eram mais de 20 por cento do mercado de trabalho, na esmagadora maioria jovens e solteiras.

De resto, as mulheres não tinham acesso à magistratura, nem à carreira diplomática, e podiam ser legalmente proibidas de trabalhar fora de casa pelos maridos, a quem era ainda reconhecido o direito de as repudiar se não fossem virgens para o casamento.

Nada de espantar, se pensarmos que, por essa altura, a lei portuguesa autorizava o marido – «chefe de família», como se dizia – a abrir a correspondência da mulher, e tratava com particular brandura os crimes passionais: se o homicídio fosse em consequência de flagrante adultério, a pena era meramente simbólica.

A distribuição do poder, na célula familiar, era uma reprodução em ponto pequeno da estrutura do próprio regime: dominada pela figura do chefe, que detinha o poder marital e paternal, além de administrar, sem necessidade de prestar contas, não só os bens comuns do casal, mas igualmente os da mulher – a quem restava, à face da lei, «o governo doméstico». Assim mesmo.

Não parece o mesmo país? Pois não. Nesse Portugal de há 40 anos, a prescrição de anticoncepcionais estava proibida aos médicos da Previdência e a venda de contraceptivos fazia-se às escondidas, em alguns quiosques e farmácias. E, naturalmente, a interrupção voluntária da gravidez, em qualquer circunstância, era severamente punida com pena de dois a oito anos de prisão – o que não evitava os cerca de cem mil abortos clandestinos todos os anos, que eram das principais – se não a principal – causa de morte materna.

Era deste país e destas coisas que falava José Saramago, no livro A Bagagem do Viajante, que fez publicar nesse ano. Livro discreto, saído com a chancela da Arcádia, reunia um conjunto de crónicas publicadas em jornais nos anos anteriores. Não era ainda um romancista, nem sequer um autor muito relevante, mas o livro fez o seu caminho. O Nobel do ano foi para Patrick White, atribuído na mesma altura em que Agatha Christie publicava o seu derradeiro livro, Posten of Fate, publicado em Portugal com o título Morte pela Porta das Traseiras.

Nesse ano ainda, Julio Cortázar publicou o Livro de Manuel e Graham Greene O Cônsul Honorário, Vargas Llosa deu à estampa Pantaleão e as Visitadoras, um livro que inaugura uma nova fase na sua escrita depois do enorme sucesso de Conversa na Catedral, em 1970. Alguns títulos, apenas, de um ano marcado também por desaparecimentos de vultos importantes da cultura do século XX: em Pequim, onde se exilou depois da ruptura com o MPLA, morre o poeta angolano Viriato da Cruz (autor de Namoro, poema musicado por Fausto Bordalo Dias e de que Sérgio Godinho foi o primeiro intérprete);  em Madrid, extingue-se o francês Henri Charrière (autor de Papillon); em Paris falece Pablo Picasso, pintor de Espanha e do mundo; e alguns meses depois morre em Porto Rico o violoncelista catalão Pau (Pablo) Casals. Um outro Pablo, amigo de ambos, partirá nesse mesmo ano: o chileno Neruda, que não vai sobreviver mais de uma semana ao golpe de estado que derrubou o governo legítimo de Salvador Allende, mas escreve ainda um poema final, Os Sátrapas, que  teve a publicação de estreia em Portugal – na primeira página d’A Opinião – escassos dias após a morte do poeta.

O sangrento golpe militar do Chile teve repercussões um pouco por todo o mundo, e deu origem a grandes movimentos de protesto e solidariedade um pouco por todo o mundo – mas não em Portugal, onde tais manifestações dificilmente seriam bem aceites pelos governantes. Ou talvez sim, já que nesse mesmo mês de Setembro de 1973, Marcelo ia ter outras preocupações: a proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, no dia 23, foi um sinal claro de que a guerra tinha chegado a uma posição insustentável e dificilmente poderia ter uma solução militar. O regime aproximava-se do fim a passos largos, e só mesmo os mais irredutíveis e os menos perspicazes não se davam conta desta inevitabilidade. Seriam só mais uns meses. A primavera seguinte ia ser uma festa. Só que, em 1973, ainda ninguém sabia.

Publicado em QI - Diário de Notícias | 3.Ago.2013