Cante(mos) no mundo

Cante(mos) no mundo

Se tudo correr como previsto, a candidatura do cante alentejano a Património Imaterial da Humanidade concretiza-se esta sexta-feira com a entrega formal do processo respectivo, na sede da Unesco. Em Paris, França, imagino que com a pompa e a circunstância dimensionadas à realidade, já que amar o cante, como bem sabemos, não significa necessariamente ir em cantigas.

Do lado dos proponentes, ressalta a muito legítima vontade de salvaguardar um património construído a partir de muitas gerações de trabalhadores assalariados do campo – afinal, os inventores do cante, pois foi do seu engenho que nasceram as modas que lhe dão forma.

Naturalmente, levar o cante para o mundo não é uma ideia consensual. Os mais cépticos argumentam que não é oportuna, pois se ainda agora foi o fado, e só o de Lisboa, alevantado a tal condição, talvez a quota lusitana nestas pequenas grandezas do mundo já esteja preenchida.

Para outros, mais ferozes na detracção, era só o que faltava virem agora os alentejanos pôr em risco o monopólio lisboeta em matéria de imaterialidade patrimonial. Ouçam um fadinho e bebam um copo, a ver se lhes passa.

Para os cínicos, tanto se lhes faz, e será uma boa ideia se daí vier algum bom proveito. Os mais cínicos dos cínicos, pensam mesmo que, com o fado e o tango já imaterializados e o cante a tentar fazê-lo, um dia destes alguém se lembra de propor também o fandango, provavelmente o único género musical do mundo com uma única composição no cardápio.

E é inevitável: os que são apenas vaidosos ficarão muito contentes por mais esta oportunidade para dar largas ao patriotismo de fim-de-semana. E os da política pensarão rapidamente na melhor maneira de traduzir a hipotética distinção em número de votos. Como diz a cantiga, “faz parte”.

Eu, que sou do mundo e em boa parte sou também da música, acho que ela, a música, é em si mesma, e por definição, património da Humanidade. Daí que, à primeira, tendo a encarar estes actos como algo redundantes e, frequentemente, dados sobretudo a alimentar as vaidades particulares e colectivas, dos indivíduos e das comunidades.

Mas é um facto que o cante alentejano possui uma história de muitas dignidades por trás. E é esse legado, acima de tudo, que deve ser preservado. Pela difusão do conhecimento, pela transmissão afectiva de proximidade, pela vontade de fazer mais, desde que melhor.

Oficializar o cante como parte do espírito do mundo não é uma ideia descabida, mas terá sobretudo um significado positivo na auto-estima de quem dele está mais próximo. E isso é bom, mas insuficiente. Ideal será que essa distinção, ou o sonho dela, seja um impulso para que o cante passe a fazer parte da vida de um maior número de pessoas, mas também que se mantenha fiel àquilo que é. E que não se banalize a ponto de um grupo de cantadores poder confundir-se alguma vez com um vulgar coral etílico – como já pude observar em certas ocasiões, felizmente poucas e com cidadãos de alentejanidade duvidosa.

É verdade que, por tolice, generosidade ou pudor, às vezes tendemos a aplaudir demasiado facilmente qualquer nova experimentação, sem antes cuidarmos de avaliar com justeza aquilo que nos é apresentado. É o que, em parte, está a acontecer com o fado, sujeito agora a uma dose de mediatização que se arrisca a afastar mais gente do que aquela que conquista. E é isso que, de todo, não se deseja para o cante. Património do mundo? Pois sim, desde que não deixe de ser nosso.

Diário do Alentejo | 30.Mar.2012