Quando, no já longínquo ano de 1969, José Afonso gravou Contos Velhos, Rumos Novos, o disco que o afastava em absoluto da matriz coimbrã, o primeiro som que se ouvia era o de uma trompa. É em «Bailia», a canção que abre o disco, música de Zeca para uma trova escrita no século XIII por Airas Nunes – e não deixa de ser significativo que tenha sido ao passado remoto que o músico foi buscar o mote para os «rumos novos» que a música dele iria trilhar. O trompista escolhido por José Afonso chamava-se Adácio Pestana e era, já nessa altura, um dos mais representativos intérpretes portugueses de instrumentos de sopro.
O episódio vale sobretudo pelo simbolismo que encerra, mas é também demonstrativo da personalidade musical de Adácio Pestana que, pese embora a sólida formação erudita, nunca se escusou a participar em projectos musicais de outras áreas, dando assim substância àquilo que diversos melómanos têm como adquirido desde há muito, mas que continua a ser de difícil aceitação por mentes preconceituosas: mais do que música erudita e música popular, existe música boa e música má.
Nascido em Gouviães, no concelho de Tarouca, no ano de 1925, foi em Campolide que Adácio Pestana passou grande parte da vida. Músico de excepção, dedicou-se de corpo e alma à trompa, o instrumento que foi o seu durante mais de sessenta anos e de que se tornou um intérprete de referência a nível internacional e dos principais mestres em Portugal.
Oriundo de uma família de músicos, tinha apenas 14 anos quando se tornou regente da banda da sua aldeia. Daí passou para os Pupilos da Guarda Nacional Republicana, primeiro passo para integrar, alguns anos mais tarde, a prestigiada Banda da GNR. Aos 23 anos já era primeira trompa da Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, de que fez parte até à sua extinção, em 1989, por decreto do então secretário de Estado da Cultura, Pedro Santana Lopes.
Também actuou com outras importantes formações nacionais, como a Orquestra Gulbenkian ou a Nova Filarmonia de Lisboa, e conquistou a admiração de grandes maestros do seu tempo, desde Pedro Freitas Branco a Igor Stravinsky ou Leopold Stokowsky. Convidado por diversas vezes para integrar algumas das mais prestigiadas orquestras do mundo, recusou sempre sair “deste cantinho” que amava e onde se sentia feliz.
Foi ainda professor no Conservatório Nacional, na Academia de Música Eborense e no Conservatório de Setúbal. Fundou, com o irmão Ângelo, o Quinteto Nacional de Sopro que, a partir da década de 50, se afirmou como a mais importante formação do género em Portugal. E trabalhou também com alguns dos mais importantes compositores e intérpretes de música popular, contribuindo de modo inequívoco para o engrandecimento do nosso património sonoro colectivo.
Além de José Afonso (com quem voltou a colaborar em Galinhas do Mato), Adácio Pestana deixou a sua marca em diversos registos de outros nomes fundamentais da música portuguesa, como Carlos do Carmo, Carlos Mendes, Fausto Bordalo Dias, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Banda do Casaco ou Heróis do Mar.
Eduardo Paes Mamede, produtor e orquestrador de alguns discos de Fausto e que trabalhou com Adácio Pestana, por exemplo em Por Este Rio Acima e O Despertar dos Alquimistas, recorda-o como «um dos melhores, ou talvez o melhor, para o trabalho de estúdio», alguém que «sabia como as coisas se passavam e tinha paciência, para além de ser um grande profissional».
Adácio Pestana faleceu inesperadamente em 21 de Abril de 2004, na sequência de um acidente de viação, em Penacova, que também vitimou a mulher, Maria da Glória. Ficou a memória de um homem afável e de um artista sempre disponível para partilhar o muito que sabia. E ficou a música, claro. A dele e a dos outros a que emprestou engenho e arte.
NC- Notícias de Campolide - Nov. 2014