Troikas e baldrocas

Troikas e baldrocas

A imparável troika voltou a Lisboa para deduzir o óbvio: que a receita da austeridade é um fracasso, com a quebra do consumo a aumentar na razão directa do assalto à mão desarmada com que os cidadãos estão confrontados, resultando numa diminuição dos proventos reais do Estado.

A coisa é claramente perceptível por qualquer um que domine os princípios básicos da aritmética, e nem sequer é preciso uma licenciatura à la minuta para entender que, espoliando a grande massa de assalariados, a receita fiscal sobre o consumo tende a diminuir a um ritmo exponencialmente mais elevado do que o resultado obtido pelo «corte da despesa» – entenda-se: pelos despedimentos, aumento do IRS, extinção de serviços públicos, cortes de subsídios e de direitos dos trabalhadores, etc. – e consequentemente o Estado nada lucra e tudo perde com os sacrifícios a que submete a grande maioria dos cidadãos.

Falo de cidadãos assalariados, e nestes incluo os directos e os indirectos, pois que – ao contrário do que a propaganda oficial dos sucessivos governos faz crer – não o são menos os milhares de trabalhadores «independentes», agricultores, pequenos comerciantes e industriais, todos, afinal, sujeitos a diferentes pequenos e grandes poderes empresariais e/ou estatais.

Ora, se qualquer cidadão comum entende estas evidências, por maioria de razões as compreendem o careca, o baixinho e o outro senhor da troika, tal como os vassalos de serviço que integram o governo. Perceberam-no, aliás, muito antes de qualquer de nós, mas isso não lhes tirou o sono. Porque esta gente não nos quer bem, e está disposta a tudo para dificultar a vida de todos e de cada um – e, se deixarmos, vai ser assim até os nossos netos serem avós.

Porém, ao contrário do que diz o mais conhecido condómino da lisboeta Travessa do Possolo – e os ministros, os borges e demais papagaios oficiais passam vida a repetir – não foram os portugueses que viveram acima das suas possibilidades. Nem os gregos ou os espanhóis.

Até um economista barato sabe que a «crise» actual resulta da mais significativa transmutação operada no capitalismo durante o século XX, quando o poder político e económico que até ao século XIX pertencia em grande parte aos detentores dos meios de produção, passou na totalidade para as mãos dos especuladores financeiros. A economia virtual esmagou a economia real e assumiu o controlo sobre «os mercados», secundarizando os «produtores» face aos «investidores».

A primazia dada à circulação do dinheiro, em exclusiva função da qual passou a fazer-se a circulação de bens, conseguiu enganar por um tempo os incautos, até que a verdade irrompeu em todo o esplendor e miséria, quando o paraíso prometido pelos bancos se revelou o pesadelo para que foi pensado desde o início e a vida real passou a ser uma espécie de «jogo do monopólio». Mas a doer.

De certo modo, poderia afirmar-se que a «crise» deste início de século tende a colocar as duas classes historicamente antagónicas, burguesia e proletariado, no mesmo lado da barricada contra o inimigo maior e mais poderoso que é a alta finança sem rosto nem existência física que a todos oprime e condiciona.

Perante este obscuro e obsceno cenário, seria desejável que os governos dos países mais frágeis fossem minimamente solidários com o seu povo – trabalhadores e empresários incluídos. Em vez disso, optam (como no caso português) por manter a ilusão da «inevitabilidade» do sacrifício desigual, rendendo-se aos desígnios dos patrões da banca e das «agências de rating» como se da voz de Deus de tratasse.

Em nome desses nada claros interesses, é também sem qualquer pudor que o governo corre a pôr em causa a soberania do Estado, por exemplo ao ceder o controlo de sectores estratégicos essenciais a estados estrangeiros (como fez com a energia) ou ao desbaratar por dez-reis-de-mel-coado o património comum identitário deste espaço a que chamamos Portugal.

Tudo isto acontece perante a raiva muda dos cidadãos e a atitude zombie de um equivocado Partido Socialista, que já surpreende tão pouco como os inócuos apelos ao «bom senso» que chegam de um cada vez mais oco palácio de Belém. O mais estranho de tudo, não parecendo, ainda é a mudez súbita de Paulo Portas perante esta delapidação sistemática do País e do povo que nele habita.

Ao cabo de 400 dias de actividade deste governo, o segundo partido da coligação parece ter-se conformado com o cumprimento da função aritmética que lhe cabe para viabilizar as decisões de Passos & Relvas. Dir-se-ia que, de um momento para o outro, o humanismo cristão do dr. Portas foi traído pelo pecado da cobiça que está nos genes dos seus parceiros de coligação – sempre em nome dos sacros mandamentos da troika, naturalmente. Os arroubos de patriotismo que deram forma, por um tempo, aos discursos do líder do CDS, são coisa do passado.

A destruição dos serviços públicos é parte do plano de desmantelamento do Estado que os fundamentalistas do mercado querem impor como «solução final» para o presente e o futuro. Ora todos sabemos o que isto significa. A concretizar-se, não seria apenas um recuo democrático, mas também civilizacional que levaria gerações para recuperar.

Digamos, então, que esta é também uma derradeira oportunidade para a Direita clássica, tão orgulhosa dos seus alegados princípios e valores, fazer prova de vida e mostrar que ainda os tem. Se tem. Por patriotismo, que seja, se não pode ser por humanidade. Para prevenir um desfecho que será (ainda mais) doloroso para todos. Porque tapar um buraco continuando a cavar não é, nunca foi, solução para obras de engenharia. Muito menos para resgatar um país.

Jornal do Fundão | 6.Set.2012