Recordação de Miguel Serrano

Recordação de Miguel Serrano

Cada um de nós devia ter direito aos seus mestres. E devia lembrar-se deles a cada dia, não num mero exercício de saudade, mas porque assim os conseguimos manter por perto e de algum modo continuar a usufruir do privilégio que foi tê-los conhecido. 

Eu tive direito aos meus mestres, grandes mestres com quem aprendi o mais importante do meu ofício e da vida. Alguns, poucos, ainda estão vivos e activos, a maioria infelizmente já não, marca inexorável da minha própria antiguidade. Por pudor, não vou enumerá-los a todos, ficar-me-ei pela lembrança grata de um deles, desaparecido está agora a fazer seis anos, e que teria cumprido 90 em Maio pretérito.

Chamava-se Miguel Serrano e nasceu em Moura, como bem sabem os meus leitores deste Alentejo de que ele nunca se afastou. Esteve ligado a este (hoje) semanário em que escrevo e a mais uma mão cheia de projectos jornalísticos locais, fez-se nome respeitado na grande Imprensa nacional, onde trabalhou durante mais de 30 anos. Na revista “Vida Rural”, que dirigiu, nas páginas da “Ocidente”, da “Vértice”, da “Seara Nova” ou da “Vida Mundial”, bem como nas páginas literárias dos jornais “Comércio do Porto”, “Jornal do Fundão”, “Notícias da Amadora”, “Jornal de Notícias” ou “Diário de Lisboa”. Mas sobretudo nas redacções do “República”, do “Diário de Notícias” e de “O Diário”, onde passou a maior parte do seu tempo de jornais.
Conheci-o nesta última, embora os meus primeiros textos lhe tenham passado pelas mãos no tempo em que coordenava o suplemento “Juvenil” do “República”. Eu era pouco mais que um catraio arribado à grande cidade vindo de um lugar longe onde dificilmente se materializavam os sonhos. Ele era já então um cinquentenário iluminado pelo brilho de profunda humanidade que lhe acendia o olhar.

Acamaradámos bem, apesar da diferença geracional. Ou talvez por causa dela. O Miguel – como todos lhe chamávamos, que nesse tempo não havia “doutores” nem “colegas” nas redacções – era um ágil praticante do rigor, da palavra certa, da importância da notícia. A grande cultura e o profundo sentido de companheirismo, que o levavam a encarar cada camarada como um amigo, eram características essenciais da sua personalidade.

Um dia – uma noite, talvez, em dia de piquete – ganhei coragem e mostrei-lhe uns textinhos não jornalísticos que tinha escrito, espécie de poemas uns, palavreado avulso os outros. O Miguel leu tudo, anotou, e no fim disse-me o que achava. Alguns reparos formais, qualquer coisa do estilo “gosto de ti, miúdo” e um animador “continua a escrever que escreves bem”. Não sei se fiz bem, mas continuei a escrever.

Com Miguel Serrano, meu mestre Miguel Serrano, aprendi muitas coisas. E sobretudo entendi a importância das qualidades humanas para o desempenho íntegro e integral do jornalismo. Como, afinal, de qualquer ofício. Porque pode sempre ser-se um bom profissional sem se ser boa pessoa. Pode, conheço alguns. Mas não é a mesma coisa.

Diário do Alentejo | 27.Julho.2012