O cante e as armas

O cante e as armas

A decisão da comissão nacional da Unesco de adiar por um ano da candidatura do cante alentejano a património imaterial da Humanidade é mais um triste exemplo da lógica centralista do poder e da desconsideração que lhe merecem os cidadãos.

Não ponho em causa a eventual validade dos argumentos apresentados, de resto merecedores da concordância de especialistas por quem tenho o maior respeito, como o musicólogo Rui Vieira Nery. Mas o modo como o processo foi gerido, nesta fase final, pelo ministério de Paulo Portas é, no mínimo, revelador de uma total falta de respeito por quantos se empenharam neste objectivo.

Admitamos, portanto, que a candidatura possuía insuficiências e carecia de maior sustentação científica. Creio que terá havido tempo mais do que suficiente para corrigir o que precisasse de correcção, sem necessidade de frustrar desta maneira as legítimas expectativas de quem apostou muitos meses de trabalho nesta propositura.

O que se passou com a candidatura do cante é, no fundo, uma metáfora do modo como o governo (mal)trata o país e as pessoas que vivem nele. Para a equipa de Coelho & Relvas, ou vice-versa, Portugal seria um lugar esplêndido se não fossem os portugueses, que só servem para empatar o pleno desenvolvimento da economia.

A economia, ora aí está. Durante anos, pensávamos que ela deveria estar ao serviço das nossas vidas, mas aconteceu exactamente o contrário. Bens fundamentais, como a água, ou conquistas civilizacionais das sociedades (como a saúde, a educação, a energia, as telecomunicações) vão-se tornando cada vez mais peças avulsas do mesmo mercado global. E, pelo caminho que levamos, não tardará a que voltem a estar acessíveis sem restrições apenas para um pequeno número de «escolhidos», vá lá saber-se por quem.

A crescente desvalorização do trabalho, e consequentemente das pessoas que o exercem, e a impunidade com que se movimentam os grandes grupos financeiros, são apenas a face mais branda da indignidade que nos querem impor. Portugal é hoje um país ocupado, gerido por um governo de capatazes da troika para quem tudo se compra e tudo se vende. E a história ensina-nos que é sempre por essa via que se caminha para a barbárie.

Perante o triste estado a que chegámos, defender uma causa como a do cante pode chegar a parecer uma insignificância. Mas não: é da preservação da memória do passado que se caminha para o futuro, e a memória do cante é parte inteira da história do Alentejo e de Portugal. Reparem que falo da memória e não da tradição, uma vez que esta por si só não vale nada se não tiver atrás de si a vivência, a recordação e o exemplo dos ancestrais. Dito de outra maneira: é pela observação do que de bom e de mau nos legaram os avós que poderemos fazer um mundo melhor para os netos.

Caso contrário, estaremos apenas a repetir rituais sem sentido, simplesmente porque «sempre foi assim e não pode ser de outra maneira» – e este seria, com certeza, o modo como os (des)governos de cá e de lá de fora gostariam que pensássemos. Ora o cante serve justamente para que não nos esqueçamos das dores passadas, de modo a evitá-las nos tempos vindouros. Nos dias que vivemos, cantar volta a ser um modo de resistir. Mas isso, para os alentejanos, é desde há muito apenas um modo de ser.

Diário do Alentejo | 20.Abril.2012