Relvas há só um

Relvas há só um

Devia ser-me fácil falar do Fernando Relvas. Porque somos amigos de quatro décadas, porque ele é quem é, porque a história da banda-desenhada (e da cultura) portuguesa seria certamente outra se ele não tivesse existido. Mas o Relvas merecia que se falasse dele sem a mágoa de quem o viu partir, amargo e triste e muito mais cedo do que seria justo. E eu, nestas coisas dos amigos que se vão antes do tempo, sou como o José Cardoso Pires: tenho muito mau perder.

Além de que estas prosas sobre os ausentes tendem a dar em algo entre o evangélico e o panegírico, coisas que não apenas haviam de irritar bastante o Relvas como o levariam, de certeza, a dar rédea solta ao lendário mau-feitio de que era bastas vezes acusado – nem sempre injustamente, aliás. Vou, por isso, tentar cingir-me aos factos.

E facto é que o Relvas tinha um talento invulgar, irrequieto, prodigioso: um traço e uma marca reconhecíveis à distância, uma cultura incomum. Era um pesquisador frequentemente obsessivo de cada pormenor que desenhava – e as notas bibliográficas, especialmente nas obras de ficção histórica, são disso a prova. E era sobretudo um criador de episódios e situações e personagens ímpares, crónica voraz dos dias em que fomos felizes, mas também dos outros.

Porque a história do Relvas é a história da nossa liberdade. Não por acaso, 1974 foi também o ano em que ele começou a bandadesenhar o mundo e as coisas em volta: uns bonecos soltos, primeiro, na Gazeta da Semana e no Fungagá; histórias mais consistentes, a seguir, no Tintim – por onde andava então Dinis Machado (já com Peter Maynard no cadastro, mas ainda antes do deslumbre de Molero), e foi ele, Dinis, o primeiro a dar-se conta de que o Relvas era muito mais do que um puto com jeito para desenhar. Pois era.

Depois vieram, sucessiva ou alternadamente, moinantes como Violeta e Karlos Starkiller, Olga Punk e o Capitão Latino-América, a osga Heidegger e a aranha Mao-Tsé Tung. E mais ainda. No Se7e, na Ovelha Negra, n'O Inimigo. Com todos eles, e através deles, o Relvas foi retratando o mundo em redor, daqui e de toda a parte e construindo uma obra nem sempre regular, mas nunca obsequente. E, as mais das vezes, bem à frente do que era uso e costume por estes lados. No traço, mas também na atitude: ele foi o primeiro autor profissional de BD a viver (às vezes mal) exclusivamente desse trabalho, e foi muito com ele e graças a ele que a BD deixou de ser considerada uma arte menor em Portugal.

E a verdade é que a vida de Relvas foi tudo menos fácil: metade dela dedicou-a a arranjar maneira de sobreviver na outra metade, mas pronto, parece que é assim que funciona o mercado. Boa parte do que Relvas publicou – em jornais e revistas, mas também em livros nem sempre tratados como mereciam – encontra-se disperso por aí, e ainda recentemente saíram em livro as histórias do “Espião Acácio”, publicadas há 40 anos no Tintim. Mas muito mais permanece inédito: títulos como “Zigguarat” (uma sátira à realidade portuguesa que poderia aplicar-se a muitas outras) ou “Slipper” (uma BD autobiográfica inacabada, que começou a desenhar já depois de lhe ser diagnosticada a doença de Parkinson) continuam inéditos ou do conhecimento de apenas muito poucos. Tal como “Voraz” ou “Kriks, o trabalhador ideal”, criado em conjunto com a mulher e cúmplice, a também pintora Nina Govedarica.

Num país normal, Relvas não precisaria de morrer para ver reconhecidos o engenho e a arte a que dedicou a vida. Mas acontece que o Relvas nasceu – e morreu – em Portugal. Para mais, era orgulhoso e independente, intransigente nos princípios e nos fins. Também não gostava de chefes nem de lacaios, e era com frequência inconveniente. Sobretudo não contassem com ele para fazer o papel do bem-comportado no grande teatro do mundo.

Há muitos anos, numa altura em que, por uma sucessão de circunstâncias que não vêm ao caso, viveu durante uns meses num veleiro atracado no Campo das Cebolas, se lhe perguntavam como era viver num barco, respondia num resmungo: “Balançando, olha que porra!”

Foi o que fez, afinal, em cada um dos escassos 63 anos que lhe coube viver. Destino inevitável, talvez, para qualquer homem livre. E foi isso, apenas isso, que o Relvas quis ser a vida toda. Porque, como disse, a história dele é a história da nossa liberdade. Parece pouco, mas é tudo, ou é pelo menos o principal. Isto digo eu, à falta de melhor epílogo, já que devia ser-me fácil falar do Relvas. Mas não é. Desculpem, mas continuo com muito mau perder.

In Esquerda, Março 2019