A uma jornalista que, uma dúzia de anos atrás, lhe perguntou se a cantiga continuava a ser uma arma na alvorada do novo milénio, Georges Moustaki respondeu, encrespado, que «a cantiga não é uma arma, porque as armas servem para matar, e a música é um instrumento de paz». Foi em Évora, numa conferência de imprensa por ocasião de um evento de boa memória – Viva a Rua, assim se chamava o conjunto de iniciativas que durante alguns anos deu à cidade outra luz e outros sons, e onde Moustaki foi estrela de uma noite amena do ano 2000.
«A cantiga é uma arma» era justamente o mote dessa edição do Viva a Rua, e portanto a pergunta da jornalista fazia todo o sentido. Mas Moustaki navegava por outra constelação, e nem o seu conhecimento vivencial da realidade portuguesa pós-revolucionária era suficiente para o convencer de que uma arma pode também servir para fazer a paz. Uma analogia destas, para um homem como este, é algo incompreensível.
De Georges Moustaki disse Juliette Gréco que era «um homem especial, como todos os poetas». Barbara chamou-lhe «minha ternura». E os que com ele privaram recordam o humanista que adorava conhecer o mundo e «raramente passava um mês sem viajar». Daniel Ribeiro, jornalista português radicado em França há três décadas e que contactou de perto com o cantor, evoca-o como «um homem bondoso, zen e fascinante» que «fumava marijuana e jogava pingue-pongue, adorava conversar e, sobretudo, receber boas notícias».
Uma delas foi a Revolução dos Cravos em Portugal, a 25 de Abril de 1974, que inspirou a Moustaki uma oportuna versão do «Fado Tropical» de Chico Buarque. E que, por isso, rapidamente se tornou um êxito discográfico no Portugal libertado, onde Moustaki foi aliás dos primeiros artistas estrangeiros a tocar.
De Alexandria para o mundo
Egípcio de nascimento, greco-italiano por ascendência, francês por opção, homem de todos os lugares do mundo por escolha de vida, Georges Moustaki foi por vontade própria um vagabundo da música, transformando-a no veículo para poder viver do modo que escolheu.
Nascido em Alexandria, filho de Nessim e de Sarah, recebeu o nome de baptismo de Giuseppe Moustacchi, herança da ancestralidade greco-italiana da família. A cidade de Alexandre, o Grande, era «o mundo em ponto pequeno, com todas as raças e todas as religiões», dirá. «Eu raramente me sinto estrangeiro, seja onde for, porque encontro sempre uma referência a Alexandria através das línguas que ouvi, dos odores que respirei, das cores.»
Mas é a sua condição de estrangeiro que há-de catapultá-lo para a fama, na ressaca do Maio de 68, com «Le Métèque». Até lá chegar, porém, Moustaki terá de percorrer um longo caminho que inicia aos 17 anos, em 1951, numa viagem a Paris que se prolongou para o resto da vida. Um encontro com Georges Brassens, no ano seguinte, traça-lhe o rumo: é pela música que irá viver. E, por ela e por ele, troca definitivamente o Giuseppe original do nome pelo Georges que a partir de então passa a ser, em honra do mestre.
Depois de algum tempo a trabalhar como vendedor de livros de porta em porta, Moustaki tenta a sorte como autor de canções e cantor mais ou menos acidental em bares e em alguns espectáculos para que começa a ser solicitado após uma estreia discreta, em Paris, numa apresentação introdutória a um espectáculo de Jacques Brel.
Mas será como autor que, durante o resto da década de 50 e boa parte da de 60, Georges Moustaki conseguirá maior reconhecimento.
Desde logo graças a Edith Piaf, com quem se envolveria sentimentalmente durante cerca de um ano e para quem escreveu a letra de «Milord» (depois musicado por Marguerite Monnot) e algumas outras canções marcantes da Petite Môme, como «Un étranger» ou «Tu es beau tu sais». Além de «Eden Blues», «Les orgues de barbarie” e «Le gitan et la fille», que estiveram na origem de um EP de 45 rotações intitulado Piaf chante Jo Moustaki, de 1959.
Da sombra para a ribalta
Nos anos seguintes, são muitos os cantores que dão voz às músicas de Moustaki: Dalida, com «La fille aux pieds nus», Yves Montand («De Shanghai à Bangkok»), Barbara («Vous entendrez parler de lui»), Colette Renard («Les musiciens»), Juliette Gréco («Madame») ou Tino Rossi («Le pinzutu») são alguns deles. E também Françoise Hardy ou Serge Regianni, para quem Georges escreve canções emblemáticas como «Ma liberté» ou «Ma solitude».
Mas o autor não se contenta em fazer canções para os outros, quer ele próprio partilhá-las com o público. Em 1960 grava os primeiros discos de 45 rotações, sob o nome de Eddie Salem, uma vaga proposta inter-étnica que misturava sons do Mediterrâneo e que não chega para fazer história. Seguem-se alguns outros registos, já em nome próprio, parte deles extraídos de bandas sonoras que vai compondo para filmes. E um primeiro LP, Les orteils au soleil, em 1961.
Mas é só em 1969, com a publicação do single de «Le métèque», que Georges Moustaki alcança o pleno reconhecimento público. A canção, de perfil claramente autobiográfico e que tinha sido recusada por três vezes pelas editoras, adequa-se perfeitamente ao espírito que ficou da agitação de Maio de 68, e rapidamente se torna num hino libertário. E o cantor, por outro lado, abandona de vez a postura convencional com que surgia fotografado nas capas dos primeiros discos e adopta em definitivo o look barbudo, «judeu errante» de «cabelo ao vento», ilustração da rebeldia que proclama na canção.
A hora de tomar a palavra
Mas se o Maio de 68 foi determinante para o impulso maior da vida musical de Moustaki, nem por isso ele se mostrava particularmente marcado pelos acontecimentos da primavera de Paris: «Foram só algumas semanas na vida de França, que coincidem com algo que eu vivia antes e vivi depois», disse numa entrevista ao El País, em 2002, confessando-se um nostálgico diferente dos outros: «Agrada-me o lado terno da nostalgia, o que a nostalgia procura como emoção, mas não uma nostalgia amarga».
A verdade é que «Le métèque» passou a ser mais que um cartão de visita, tornou-se quase no bilhete de identidade de Moustaki. Presença obrigatória nos seus recitais, gravada e regravada dezenas de vezes em diversos idiomas e por distintos intérpretes, a canção abriu-lhe as portas para outros voos. De imediato, a gravação há muito esperada de um disco de grande formato. Le Métèque, nem menos, a que juntou um apurado conjunto de canções como «Le temps de vivre», inspirada nos acontecimentos do ano anterior, «La mer m'a donné», «Le facteur», «Ma solitude», «La carte du tendre» ou «Joseph». Na contracapa, onde presta tributo a Piaf, Barbara e Reggiani, inclui um texto de Brassens, datado de 15 anos antes.
Agora, que conquistou um palco, Moustaki está disposto a aproveitá-lo para espalhar as suas palavras em prol de um mundo mais justo e mais fraterno. Não será nunca, porém, um militante de causas no sentido estrito, embora não se negue a participar delas – uma das últimas foi eleição presidencial francesa de 2012, como apoiante do candidato de extrema-esquerda Philippe Poutou.
O enorme êxito de Le Métèque assegura a Moustaki um lugar de destaque na Polydor, que durante vários anos será a casa onde vai editar o essencial do seu trabalho. Logo em 1970 grava um novo álbum, registado ao vivo no Bobino, regressando aos originais no ano seguinte com um novo disco e novas propostas musicais, em grande parte influenciadas pelos sons do Médio Oriente. Grava, nesse disco, dois temas com música de Mikis Theodorakis («L’homme au coeur blessé» e «Nous sommes deux») e uma adaptação do tema título do filme «Sacco e Vanzetti» (original de Joan Baez e Ennio Morricone), além de temas como «Grand-père», «En Méditerranée», «Tes gestes» ou «Pourquoi mon Dieu».
O disco de 72 chama-se apenas «Moustaki», mas é também conhecido como «Danse», o título da canção de abertura. Inclui «Les amis», «Je suis un autre», «La ligne droit» (cantado por Barbara), «Rien n’a changé» ou uma das suas grandes odes à paz, «Hiroshima». E em 73 publica «Déclaration», onde sintetiza as «bases programáticas» da sua arte: «Declaro o estado de felicidade permanente / e o direito de cada um a todos os privilégios.»
É uma melodia simples, como o são a generalidade das suas canções, em que proclama a vontade de «transformar o acaso em destino / sem mestre e sem deus e sem diabo». Neste disco surge também, pela primeira vez de modo explícito, a marca da paixão de Moustaki pela música dos trópicos, nomeadamente através de uma bem conseguida versão de «Águas de Março», de Tom Jobim.
Novas experiências
Amigo de Jorge Amado e Nara Leão (e depois também de Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Jorge Ben, Vinícius), Moustaki manterá para o resto da vida uma forte ligação ao Brasil. E é aí que vai buscar a inspiração para saudar a libertação portuguesa de 25 de Abril de 1974. «Portugal», adaptação do «Fado Tropical» (música de Chico Buarque e texto original de Ruy Guerra), é a primeira canção, fora de Portugal, a exaltar a Revolução dos Cravos. A ligação ao nosso país iria manter-se ao longo das décadas seguintes, e por várias vezes os portugueses puderam apreciar os seus espectáculos.
Durante as suas passagens por Portugal conheceu também José Afonso (a quem dedicou a interpretação de «Portugal», num dos últimos recitais que realizou em Lisboa, em 2003) e contactou de perto com a euforia libertária que se viveu por cá após a revolução. De todas estas vivências se encontram ecos no disco que publica nesse ano de 1974, Les amis de Georges, que será, com Le Métèque, talvez o mais explícito dos seus trabalhos «de intervenção» política e cidadã.
Ali se inclui «Portugal» (anteriormente publicado em single com «Chanson pour elle» na lado B) e também «Sarah», «Ce soir mon amour», «Sans la nommer» – a exaltação da «revolução permanente» – ou «Le droit à la paresse», inspirada no manifesto de Paul Lafarge, genro de Marx, sobre «o direito à preguiça».
Até aos anos 80, Moustaki irá manter uma produção mais ou menos regular de um novo álbum por ano. O de 75 mistura encontros, amores e viagens com o toque místico de «Humblement il est venue» e uma aventura pela batucada em «La philosophie». E em 76 revisita a sua cidade original em «Alexandrie» e «L’amant du soleil et de la musique».
O essencial da obra de Moustaki estará porventura nestes seus trabalhos da década de 70, mas o que se seguiu não é, de modo algum, despiciendo. Sempre aberto a novas experiências e conhecimentos, a partir da década de 80, participa em vários trabalhos e projectos, próprios ou alheios. Humildemente, decide, a caminho dos 50 anos, aprender a tocar acordeão. E, em 82, grava com o grupo holandês Flairck um disco diferente de todos.
Mas não deixou de ser fiel a si mesmo, e é a si que regressa em 1984, com Pornographie, brincando novamente com as palavras e os seus sentidos, em 86 com Joujou, onde regista novos encontros com outros camaradas da música (Richard Galliano, Paco Ibánez, Maxime le Forestier) ou em 92 com Méditerranéen, com arranjos de François Rauber.
Em 1996 regista um disco acústico a que chamou Tout rest a dire. Ao contrário do que o título poderia indicar, não foi esse o último trabalho de Georges Moustaki em estúdio. Voltaria ainda em 2003, para gravar Odeon, e em 2005, para registar as canções de Vagabond, e em 2007 publicaria Solitaire, uma antologia de canções com DVD. Dois álbuns gravados ao vivo, completam a discografia de Moustaki neste período, a que se juntam mais de uma dezena de compilações feitas a partir de fins dos anos 80.
Foram, ao todo, vinte discos de originais, que resumem os sonhos eternos deste homem que parecia vaguear ao ritmo dos acasos, atento à realidade na exacta medida daquilo que nela lhe interessava conhecer e partilhar. Vendo-o e ouvindo-o era esta a sensação que muitas vezes transmitia. Mas era, sobretudo, um artista fiel ao código de vida que escolheu.
Era este, se calhar, o segredo da sua música. Vagabundo da canção, construtor de melodias para versos simples, amante da paz e de momentos que não se repetem. «Métèque, juif errant, pâtre grec» – Moustaki foi um pouco de tudo isto, e sobre tudo isto cantou e escreveu. Morreu menos de um mês depois de celebrar 79 anos, em paz, no país que escolheu e o acolheu.
QI | Diário de Notícias | 1.Jun.2013