Que viva o Zeca

Que viva o Zeca

José Afonso morreu faz agora 30 anos. Como dizia o meu camarada, amigo e mestre Fernando Assis Pacheco, «estas efemérides são muito chatas porque, não tendo nós o dom da ressurreição, caímos não obstante num discurso tão próximo do evangélico que soa a falso». Gostaria de fugir-lhe, pois, na certeza de que é tema sempre delicado, desde logo pelo modo como, por regra, amigos e admiradores de José Afonso tendem a evitar o verbo morrer quando falam dele.

«A partida» ou «o desaparecimento físico» são eufemismos usados frequentemente para nomear a morte, tanto a dele como a de outros, mas nesta linha de pensamento seria mais rigoroso usar-se com José Afonso o léxico da ficção científica e falar-se em «desmaterialização»: basta olhar (e ouvir) em volta para perceber como nunca deixou de estar por perto. Assim, o que para alguns pode ser uma maneira de iludir a realidade, de certo modo também se explica pela muito óbvia razão de ser possível afirmar, com rigor e sem a leveza do lugar-comum, que José Afonso continua vivo.

No rol dos mortos ilustres portugueses do século XX são escassos os escritores, poetas, cantores ou políticos que conseguiram manter acesa a lembrança do que foram e do que fizeram em vida para lá de um mais ou menos alargado círculo de amigos, conhecidos e, vá lá, um ou outro especialista disponível para lhes resgatar a memória nas efemérides redondas.

Ora José Afonso contraria esta regra, e a obra gravada que deixou não apenas continua a ser ouvida e divulgada, como segue sendo inspiração para muitos e muitas intérpretes dos mais variados géneros e feitios. Melhor ou pior, pelas mais diferentes vozes, o número de registos de canções de José Afonso tem-se sucedido a um ritmo que poucos autores vivos conseguem acompanhar. A música dele está há vários anos nas playlists das rádios e não é raro ouvi-la nas televisões. O teatro e a dança vão beber amiúde às suas canções.

Nestes 30 anos, a par da obra, a vida do poeta-cantor tornou-se também mote recorrente de livros, partilhas de fragmentos de memória, estudos universitários, eu sei lá. Do que tem sido feito – e seguramente continuará a ser – nem tudo se guia pelas melhores razões e, a par de muitas coisas dignas, há com certeza vários livros, discos e outros materiais com José Afonso no rótulo que nada acrescentam e nada revelam. São, à semelhança dos respectivos autores, trabalhos desnecessários. Mas não importa: esse é um risco inerente à liberdade, e também por isso é importante continuar a ouvir – e conhecer, e divulgar – a obra grande que legou ao mundo, e deixar que o tempo se encarregue de julgar o resto.

Por sorte nossa, José Afonso nunca deixou de ter ouvidos atentos por perto e gente, muita gente, disposta a manter viva a memória do que ele foi e do que fez. Continuar José Afonso é, assim, um objectivo que já não se esgota na associação que tem o seu nome (sendo ela, também, um caso raro de persistência e vontade), antes se tornou uma prática colectiva. Sem muros nem ameias, poderíamos dizer, como ele gostava e proclamou que deveria ser o lugar onde vivemos.

Neste contexto, afirmar que venceu a morte não é uma simples imagem metafórica. «O Zeca era mesmo genial», escreveu Sérgio Godinho, anos atrás, «e muito gostaria que isto não fosse um consenso, mas um dado adquirido». Inevitavelmente, a genialidade levou à consonância, a tal ponto que é hoje raro o disco de jovem cantor ou cantora que não inclua uma canção do Mestre. E porque não, se as canções dele continuam a ser do que de melhor a música portuguesa gerou? Evocar José Afonso nestas efemérides é, assim, apenas continuar a cantá-lo e a ouvi-lo, coisa que em boa medida já passou a ser um hábito. E, num certo sentido, ainda bem: a arte que criou e lhe sobreviveu segue agora o seu caminho, e não duvido que assim continuará a ser por muito tempo.

Para os amigos – e para todos os que, de um modo ou de outro, o conheceram e conviveram com ele – José Afonso continua a ser o Zeca, bem mais homem do que mito. Bem-humorado, corajoso, hipocondríaco, despistado, consequente mesmo quando contraditório, intransigente nos princípios, dialogante nos meios e nos fins, sempre luminoso. José Afonso, o Zeca, foi mesmo isto tudo, e ainda mais. E, como explicava recentemente Luanda Cozetti num programa de rádio, cada um dos amigos dele pôde ir construindo o seu próprio Zeca, a partir das vivências particulares, e pode tê-lo hoje sempre por perto.

O meu Zeca é, assim, tão idêntico e tão único como o Zeca de Luanda ou o dos que partilharam com ele o palco e as lutas clandestinas. Mesmo se as lembranças que ficaram em quem com ele conviveu são frequentemente distintas e só pontualmente têm a ver com o artista: os episódios que mais rapidamente lembramos revelam quase sempre o cidadão, o militante da liberdade, o homem inquieto. Imperfeito, com certeza, como é próprio dos homens, e por isso mesmo consciente de que o mundo só muda se o obrigarmos a mudar. Coerente com esta convicção, Zeca fez a parte dele.

De tanto se falar em José Afonso, o artista, por vezes corremos o risco de esquecer o Zeca, o ser inteiro. E se é compreensível que a dimensão política de José Afonso seja por vezes subvalorizada para que a sua obra não possa ser olhada à luz do preconceito, seria inaceitável que essa parte da vida dele fosse reduzida a algo menor, em nome de uma unanimidade que o próprio sempre rejeitou.

Também por isso, aos que ficaram (principalmente aos amigos, mas na verdade a todos nós) compete prosseguir, hoje como há 30 anos, inventando novas rotas e caminhos diferentes. Novamente isto pode parecer lugar-comum ou frase feita. Mas é mesmo a única coisa que há para fazer: insistir, resistir, não desistir. Aferrar-se ao mundo, como a toupeira «que esburaca» ou como a formiga que «fura, fura, fura sem parar». O Zeca, esse, continuará por perto a cantar-nos ao ouvido e à alma. Vivo, com toda a certeza.

In Esquerda.net - 22.Fev.2017