Sentido de estrado

Sentido de estrado

A modorra estival foi subitamente agitada, dias atrás, pelas declarações de Zita Seabra no programa do estulto Mário Crespo. Segundo a ex-deputada, o PCP utilizou a debelada Fábrica Nacional de Ar Condicionado como fachada para tenebrosas missões de espionagem, levadas a cabo em conluio com caliginosos agentes da STASI durante a Guerra-Fria.

Tudo indica que o gosto pela fábula acompanha a cândida senhora desde que, no final dos anos 80, viu «a luz» revelada por São Miguel Gorbátchov. Ao contrário do derradeiro presidente soviético, porém, que terminada a função se dedicou ao negócio das pizas, Zita ainda quis optar pelas artes, mas cada um é para o que nasce.

Ainda assim, a passagem pelo Instituto Português de Cinema, primeiro, e pelo universo editorial, depois, terão despertado a Agatha Christie que havia nela. Deste modo, vemos o «barão vermelho» da FNAC, Alexandre Alves, de gabardina e Trabant, cogitando a distribuição dos microfones a instalar nos ministérios, nas embaixadas e onde mais aprouvesse à procelosa actividade espiatória que os malandros dos comunistas levavam a efeito (Aqui para nós: foi com certeza trabalho vão, ou o país não teria chegado aonde chegou, mas isso agora pouco importa.)

O episódio vale pouco, é apenas um fogacho passageiro de tolice estival. Mas ainda assim elucidativo do estado de indigência mental a que chegaram alguns dos protagonistas actuais da política mediática. Três anos após a comovente novela dos emails presidenciais, com direito a comunicação solene, chegou a vez de o mundo deslindar, através da mente superior de Zita Seabra, o mistério do ar condicionado pelo dr. Cunhal a mando do dr. Honecker. Belo guião.

À classe política dominante falta em sentido de Estado o que lhe sobra em sentido de estrado, essencial à sociedade do espectáculo. O imenso reality show em que se converteu o dia-a-dia lusitano permite transformar um ministro numa anedota em menos de um fósforo. Mas, anedota ou não, ele continua ministro, essa é que é essa – o que não aconteceria se, em vez de ser uma anedota, tivesse contado uma, porque importante, na política como em qualquer palco, é o que parece, não o que é.

O aguçado sentido de estrado dos dirigentes indica-lhes que a diversão tem de continuar, haja o que houver. À comunista arrependida coube, este Verão, desempenhar o papel do tolo-da-terra que anima e distrai a urbe, em esforçada tentativa para pôr fim ao estafado anedotário ministerial. Foi azar, trazer escutas à conversa, pois há logo quem se lembre de que, meses atrás, se falou em outras, menos fantasiosas, ponta solta de uma teia maior em cujo seio – diz-se – se acolherão grandes interesses empresariais, um antigo alto responsável das secretas e até o ministro de maior visibilidade no governo actual – o das anedotas, nem menos. Tudo isto são factos sustentados em actos, mas que até hoje não tiveram consequências. O ministro continua a ministrar, o espião faz o que sempre fez, e se o governo não faz é só porque já não sabe o que fazer.

O país definha, perante a indiferença magna do poder, apostado em salvar bancos e banqueiros custe o que custar e a quem custar. Enquanto isso, noticia o Expresso que o montante das transacções ilícitas para «paraísos fiscais» ascende a 3.446.386.015 euros. Por extenso, para cima de três mil milhões de euros, uma insignificância detectada a troco de um súbito branqueamento de baixo custo, pois que o sacrossanto défice legitima todas as iniquidades.

Fim da crise não se vislumbra, mas o país começa a rir-se cada vez menos das anedotas de Relvas e não creio que a coisa se componha com a lufada de ar condicionado que Zita traz à liça. O Outono ameaça aquecer mais que o Verão, e em breve não restará mais por onde iludir a realidade: ou inventam um novo sentido, ou arriscam-se a perder o estrado. Porque até um povo paciente e manso se cansa de tão profundo sentido de estábulo que lhe é exigido.

Jornal do Fundão | 16.Ago.2012