Há quem diga que é um prenúncio do fim do mundo, há quem pense que se trata de castigo divino, há quem ache que a culpa é da crise económica global. Não, não estou a falar do terramoto do Chile, nem dos massacres da Nigéria, nem da interminável guerra do Iraque, nem sequer dos sucessivos escândalos que ameaçam transformar Berlusconi no mais hilariante sucessor de Boris Yeltsin no anedotário europeu.
Refiro-me antes a essa espécie de loucura branda que parece ter tomado conta do mundo e faz com que a humanidade aceite como naturais as mais incríveis aberrações sociais, políticas e económicas. Um amigo meu com larga experiência de vida acha que é apenas um ciclo histórico menos feliz que estamos a viver. E eu, que sou um optimista, gostaria de concordar com ele, mas há que reconhecer que não é fácil.
Tudo seria mais simples se a vida fosse como nos filmes: os bons de um lado, os maus do outro, e pelo meio um Jack Bauer ou uma Lara Croft sempre disponíveis para salvar o mundo – ou pelo menos os Estados Unidos da América, que é quase a mesma coisa. O problema é que, ao contrário do que acontece no universo em miniatura de “24” e “Tomb Rider”, na vida real são por regra os bad guys quem triunfa. O que, provavelmente, ajuda a perceber porque razão eles não apenas estão cada vez mais presentes no nosso quotidiano como também são quem desempenha os principais papéis na grande comédia da vida.
Por ser assim, não espanta que o mundo encare pacífica e serenamente uma fraude tão gigantesca como foi a anunciada pandemia de gripe suína, por exemplo. Como se viu, tudo não passou de um plano para engordar ainda mais os lucros de algumas grandes fábricas de produtos farmacêuticos. Na circunstância, os bad guys apenas tiveram de espalhar o medo um pouco por toda a parte, contando com a cumplicidade acéfala dos media e das organizações internacionais que deveriam zelar pela nossa saúde e promover a segurança dos cidadãos.
O método não é novo, e foi usado com bastante sucesso para promover a guerra infinita contra o terror. Não por acaso, por trás de ambas as farsas encontra-se o mesmo rosto: Donald Rumsfeld, criminoso de guerra e empresário de sucesso, patrão, entre outras, da Gilead Sciences, uma das empresas farmacêuticas que mais lucraram com o temor da gripe suína. Hoje, já toda a gente percebeu que se tratou de mais um logro, igual ou pior ao que arrastou o mundo para um conflito sem termo nem solução. Mas Rumsfeld e os seus cúmplices continuam em liberdade. E ninguém se importa com isso.
Claro que, uma vez por outra, estas histórias de polícias e ladrões têm um final feliz. Foi o que aconteceu com Bernard Madoff que, no espaço de seis meses foi acusado, julgado e condenado pela maior burla financeira de que há memória. Passou-se nos Estados Unidos, evidentemente, onde o dinheiro é aquilo que há de mais parecido com Deus e os delitos contra a propriedade são sempre punidos de forma exemplar. Em Portugal – país de brandos costumes, diz-se – os crimes têm outra dimensão e a Justiça também. E é por isso que os nossos pequenos madoffs continuam quase todos em liberdade. Apesar de várias fraudes financeiras entretanto detectadas, no valor de muitos milhões de euros, apenas um banqueiro foi até agora indiciado, mas não sofreu mais do que uns escassos meses de prisão preventiva, encontrando-se agora prisão domiciliária, a aguardar um julgamento que, quase de certeza, nunca acontecerá.
Enquanto isso, neste meu país de marinheiros, políticos e jornalistas entretêm-se a discutir a liberdade de expressão, depois de um jornal ter divulgado um suposto plano do governo para controlar a comunicação social. A discussão acontece no parlamento, e conta com a mais ampla cobertura mediática, o que só por si diz muito sobre as razões de uns e de outros. Acresce que o jornal que fez as denúncias é suportado maioritariamente por capitais de Angola – um país, como todos sabemos, que é um exemplo de democracia e respeito pelas liberdades.
Tenho para mim que estas discussões servem o objectivo mais amplo de distrair os cidadãos das questões verdadeiramente essenciais: o aumento do fosso entre ricos e pobres que alastra por toda a Europa e se acentua de modo alarmante em Portugal, as razões concretas da crise económica que se espalha como um cancro por todo o Ocidente, a falência do neoliberalismo enquanto modelo de desenvolvimento. É para estes problemas que é necessário encontrar uma resposta antes que seja tarde demais. Da Grécia surgem já os primeiros sinais de que algo de mau poderá acontecer se não forem tomadas medidas, mas os dignitários da Velha Europa parecem empenhados em não entender que as fórmulas antigas não são eficazes para combater os novos problemas com que o mundo se debate.
Não espanta, assim, que um estudo sociológico recente, elaborado por uma equipa de investigadores da Universidade de Lisboa, tenha revelado que os portugueses estão muito insatisfeitos com a qualidade da democracia que lhes coube em sorte. Creio mesmo que, se alargado ao resto da União, o estudo produziria resultados semelhantes. E todos sabemos onde, por regra, desagua o desencanto dos povos com os regimes políticos que gerem as suas vidas…
Como se vê, este final da primeira década não se mostra animador. Mas, como disse antes, eu sou (ainda sou) um optimista. E por isso não posso deixar de sentir como um bom sinal a notícia que chega de uma região remota da Colômbia, onde um modesto professor teima em mostrar-nos que ainda há razões para ter esperança: num lugar onde os livros são um bem escasso, Luis Soriano decidiu combater o analfabetismo indo de aldeia em aldeia, montado no seu burro, distribuindo livros pelas crianças. Ele sabe que, se tiverem acesso à cultura, as crianças de hoje serão adultos melhores amanhã. E por isso não desiste, nem perde o sorriso. Porque, mesmo se todo o mundo à sua volta parece afundado na desesperança, Luis sabe que amanhã será outro dia.
Zoot | Primavera-Verão 2010